Na identidade de Joel Pereira Gonçalves, mais conhecido como Seu Joel, consta sua data de nascimento: 8 de dezembro de 1916. A vida do centenário se confunde com a própria história de Belo Horizonte. Depois de viver por quase cem anos em situação de rua na capital mineira, o idoso acumula uma série de recordações que faz de sua própria existência, um patrimônio para a cidade. Afinal, foi de perto que Joel assistiu ao surgimento de alguns dos principais pontos de Belo Horizonte.
Com um olhar atento, o idoso captou a partir das ruas cada história vivida pela cidade, que comemora 120 anos de fundação. Enquanto isso, demarca sua posição. “Belo Horizonte tem festa, e eu não tenho nada”, crava Joel, que completou seu 101º aniversário na semana passada.
Para início de conversa
Seu Joel vive sozinho em um minúsculo quarto da pensão Santa Rita, fixada no coração da região hospitalar. No local, convive com pessoas de várias regiões do estado que vêm à capital em busca de tratamento médico. Já em seu aposento, o idoso divide espaço com um pequeno banheiro e com os CDs que coleciona, em especial os de Roberta Miranda.
Na parede oposta à estante, onde guarda com carinho uma televisão e um rádio, o idoso assiste à goteira que insiste em lhe fazer companhia. “Eu escapei da chuva, mas chove aqui dentro”, lamenta Joel. Já na saída do quarto, sobre a cômoda, um recipiente de arnica chama a atenção. Isso porque Joel garante: nunca pisou em um hospital, nem ingeriu remédio durante toda sua vida.
Retrato falado
Como um dos moradores mais antigos de Belo Horizonte, seu Joel foi testemunha do desenvolvimento da cidade projetada por Aarão Reis, hoje uma metrópole muita maior que a esperada.
“O prédio em frente ao viaduto Santa Tereza era um hotel. Atravessando a avenida dos Andradas, colocaram uma delegacia, o Segundo Distrito Policial, onde o rio Arrudas foi canalizado. O rio, quando chovia, enchia e jogava água para fora demais. Uma vez, quase que ele me leva. Deu enchente, aquela correnteza forte e levou muita gente”, relembra seu Joel, que conta, gesticulando, que aprendera a nadar observando o comportamento dos cachorros sob a água.
Apesar de ter vivido boa parte de seus 101 anos sem um teto, Joel observou com atenção a mudança da arquitetura belo-horizontina. “Mudou tudo. Na época que eu nasci, Belo Horizonte não tinha nada. Aqui era só casa velha. Essas casas de tábua, de madeira e de madeirite. Não tinha prédio, não”, pontua o idoso, que tem em sua própria biografia uma relação especial com o viaduto Santa Tereza, região na qual nasceu.
“Para construir o viaduto, tiraram todo mundo daquele local e passaram para o outro lado. Minha mãe me teve lá”, relembra o idoso, que observava na infância o movimento da Serraria Souza Pinto. “Trabalhava gente demais na serraria. Sempre entravam umas carretas de madeira”, rememora Joel.
Uma capital para poucos
Sob perspectiva diferente dos poetas, dos artistas e dos intelectuais, seu Joel diz que a capital mineira tinha um quê de provinciana. “Tinha preconceito em Belo Horizonte. Aqui, antigamente, os brancos passavam de um lado e os pretos passavam de outro. Não se misturava”, queixa.
Um dos exemplos dados pelo idoso é o desenvolvimento da via que atravessa o coração da cidade: a avenida Afonso Pena. “Lá era uma favela, que começava no alto do Mangabeiras e terminava perto da rodoviária. Era só casa de madeira que tinha. O nome dessa favela era Pindura Saia. Agora acabou tudo. O pessoal foi mandado embora”, narra Joel, que ainda se recorda da população que por lá morava, entre os quais a escritora Conceição Evaristo. “Antigamente o pessoal era chamado de marmiteiro. Só tinha trabalhador”.
Na outra face da capital, no entanto, a festa continuava. Sentado sob a marquise de um estabelecimento à esquina das ruas Rio de Janeiro e Tamoios, Joel conta que uma das pizzarias próxima ao local era um clube de dança muito frequentado. “Mas eu andava todo sujo. Como que eu ia entrar? Era só gente bacana, gente rica. Não vinha gente pobre”, lamenta Joel.
Outro divertimento da época, Joel conta, eram os vários cinemas espalhados pela cidade. “Na rua da Bahia, era cheio de cinema. Lá para o lado da Lagoinha também tinha muito. Eu ficava olhando os cartazes… As pessoas compravam o ingresso e iam entrando”.
Impedido de adentrar, por conta de suas condições financeira e social, Joel encontrou na própria rua sua forma de diversão. “Em tempo de quadrilha, eu entrava no meio do povo e saía dançando no meio deles na Praça da Estação”.
Sobre viver
Sem ajuda da mãe, a quem perdeu aos 9 anos, vítima de uma picada de escorpião, seu Joel teve de encontrar alternativas para sobreviver. Diariamente, o mineiro pedia comida nas casas e encontrava nos restos de alimento descartados seu almoço de cada dia. Uma situação em especial marcou a sua rotina.
“Naquela época, não tinha sacola de lixo nem nada: era um daqueles tambores grandes de óleo, cerrados no meio. Eu pegava aquela comida que sobrava e mandava para dentro. Uma vez, eu estava comendo, ali perto da Faculdade de Medicina, e achei um pedaço de pé, cheio de dedo. Pensei que aquilo era carne e continuei a comer. E estou vivo até hoje”.
Próximo ao local, em outra ocasião, seu Joel quase foi assassinado em um incêndio. “Vieram alguns estudantes e jogaram gasolina em todo mundo que estava na rua, inclusive nas crianças. Depois acenderam um palito de fósforo e começou aquele fogaréu. Morreu todo mundo que ficou. Não me matou porque eu corri. Também era para eu morrer, mas hoje estou aí”, diz Joel, que garante que nunca mais passou no local, perto de onde era o antigo campo do América e, posteriormente, o Jumbo – primeiro hipermercado da capital.
Desamparado e sozinho, seu Joel foi vítima de mais uma crueldade: o tráfico de pessoas. “Um moço falou para mim que ia me levar para um lugar em que eu ia ter isso e aquilo. Acabou que eu tive foi chicotada nas costas. Puseram corrente nos meus braços, na minha perna e aqui na minha boca. Foi uma dona que me ajudou a fugir quando eu estava com 16 anos. Fugi e hoje eu estou aqui em Belo Horizonte”, relembra seu Joel sobre a única vez em que deixara, forçado, a capital mineira. “Me levaram para o Mato Grosso do Sul, mas sofri demais. Eu fugi dentro de uma carroça, cheia de capim”.
“Quem faz o bem, não olha a quem”
Apesar de ter como berço as ruas e vielas da capital, seu Joel sempre teve consciência das penúrias dessa situação. Justamente por isso, quando havia oportunidade, o belo-horizontino, que nunca soube ler nem escrever, acompanhava as crianças e adolescentes nesta condição à sede dos Correios.
Lá, o então garoto pedia para que os funcionários encaminhassem telegramas aos pais de seus colegas. “Não passava de dois ou três dias, a família vinha buscar. Isso era todo dia”. Dentre as figuras resgatadas das ruas, estava sua única amada, com quem Joel teve dois filhos. “Deus ajudou que ela foi embora. Melhor do que eu, eles estão”.
Dentre os casos de crianças em situação de rua, um em especial marcou a vida de seu Joel. Na ocasião, ele avistou um homem que pretendia abusar de uma garota e, indignado, ameaçou o agressor. Após dispersá-lo, Joel adotou o procedimento de costume e contatou os pais da vítima. Dias depois, sua família procurava, agradecida, uma forma de recompensar o homem que lhe salvara a filha. “Única coisa que eu quero é que vocês nunca se esqueçam de mim. Quem faz o bem, não olha a quem”.
Diferente de seus colegas, aos quais ajudou, Joel não tinha a quem recorrer e, por isso, precisou encontrar sozinho a alegria nas pequenas coisas. E é desse modo que, quase um século depois, ele lembra risonho e orgulhoso de sua infância e de seus amigos da rua.
“Eu brincava na rua com bola de meia. Enchia de molambo, de roupa velha, e saia brincando no meio do asfalto. Eu caia e derrubava os outros também. Era uma folia. Quando eu chorava, minha mãe falava: “Olha só, você não vai mais brincar. Você chora muito”, rememora Joel.
Se Deus me ouvisse
“Senhor está perto o meu fim/ Eu lhe peço meu Deus/ Tenha pena de mim”. É de volta ao quartinho de Joel que ouvimos os versos de Almir Rogério, entoados por Roberta Miranda. Depois de colocar o disco no rádio e escolher sua faixa favorita, o idoso inicia seu desabafo, quase em forma de prece.
“Eu sento aqui sozinho. A minha vida é triste demais. Já me deu vontade de jogar isso tudo fora e voltar para a rua outra vez. Eu só não fiz isso porque uma coisa me avisa para eu não fazer isso. Porque a rua tem uma ida, mas não tem uma volta. Mas, pelo menos, na rua, a gente tem com quem conversar, com quem brincar, tem tudo. Aqui eu não tenho nada”.
Apesar da tristeza, seu Joel, que pretende viver até os 160 anos, não deixa morrer o seu maior sonho: uma casa própria, localizada na cidade em que nasceu. “Eu nasci aqui e é aqui que eu tenho de ficar”.