Historicamente, mulheres de todo o mundo já conhecem muito bem a sobrecarga que a maternidade acarreta – mesmo porque, lidam com ela todos os dias. Mas, com o isolamento social imposto pelo novo coronavírus e, consequentemente, o home office determinado por muitas empresas durante a pandemia, a exaustão ganhou tônus, e ficou ainda mais evidente aos olhos da sociedade.
Desde o advento do Sars-CoV 2, vários estudos, de envergaduras distintas, foram empreendidos mundo afora, e os que têm o impacto da quarentena sobre a vida das mulheres como alvo apontam para a mesma direção – em particular, no que tange os grupos mais vulneráveis. Mas, na verdade, nem seria preciso recorrer a estatísticas: basta olhar em volta.
É fato que todo mundo conhece uma mãe em apuros com a rotina alterada também pela suspensão das aulas presenciais e o aumento do trabalho doméstico. Sem contar o próprio medo da contaminação e, num recorte ainda mais particular, o aumento da violência doméstica, que pode ser fruto da convivência mais próxima do casal ocorrida neste cenário. Sim, muitas mães estão deprimidas, como confirma a psiquiatra Christiane Ribeiro, integrante da Comissão de Estudos e Pesquisa da Saúde Mental da Mulher da Associação Brasileira de Psiquiatria.
“As mulheres, de forma geral, já apresentam um risco aumentado para depressão e ansiedade ao longo da vida, independentemente da pandemia, quando comparadas com os homens. E isso se deve a fatores hormonais, a uma maior exposição a traumas e violência sexual, à vulnerabilidade genética. Com a pandemia, percebemos um aumento nesses índices tanto em estudos que analisam profissionais da linha de frente no combate ao coronavírus (que, em sua maioria, são mulheres) quanto nos que verificam o aumento da ansiedade e do estresse em mães, gestantes e puérperas”, afirma.
Ela acrescenta que alguns fatores estressores – que podem aumentar ainda mais o risco neste período de isolamento social e pandemia – são o aumento da sobrecarga em relação às atividades domésticas somadas às atividades de trabalho, como o citado trabalho remoto. “E mais as atividades escolares das crianças que estão em casa, o aumento dos indices de violência domestica e o aumento da tensão e medo de contaminar e contaminar os filhos”.
“Em um estudo recente publicado pelo ‘Brazilian Journal of Psychiatry’, que comparou os índices pré-pandêmicos de ansiedade e depressão em bases de dados com puerperas que ganharam recentemente os seus bebês, verificou-se um aumento do dos indices de ansiedade e depressão quando analisadas as mulheres pré-pandemia e mulheres na primeira onda da pandemia (entre maio e julho/2020) e na segunda onda, entre julho e dezembro. houve aumento dos indices de ansiedade e depressão na primeira e na segunda onda”, alerta Christiane.
Psicóloga clínica e coordenadora da Plataforma Rede Psicoterapia, Rozane Fialho também também coloca em relevo a constatação (por meio de pesquisas e estudos) de que as mulheres foram as mais afetadas pelos impactos gerados pela pandemia. “Vários fatores contribuíram negativamente para a prevalência de quadros clínicos psíquicos nas mulheres nesse período. E, quando o olhar é estendido para as que são mães, os relacionados à depressão, à ansiedade e ao estresse são mais facilmente percebidos”, distingue.
Mas Rozane faz uma ressalva importante: “A pandemia apenas escancarou o que já era vivenciado anteriormente pelas mulheres e/ou mães, pois a sobrecarga foi sentida de modo esmagador e de uma forma muito mais solitária que antes, tendo em vista a necessidade do distanciamento social. Mães se viram tendo que cuidar da vida profissional, da casa, das medidas de biossegurança contra o novo coronavírus no lar e da educação dos filhos em tempo integral”.
As batalhas diárias de Nathália e Angelita
Mãe de Miguel, 9, e Pedro, 7, a jornalista Nathália Bini, 40, admite que vem alternando estados emocionais nesta pandemia. “Alterno dias nos quais digo a mim mesma: ‘Vamos ser leves, um dia de cada vez’ a momentos de surto mesmo, com os meninos andando de skate pela casa e eu tentando escrever, trabalhar. E aí tem o dia que não vai dar tempo de fazer nada de almoço, e vai comer é Miojo e pão com ovo. À noite, você está o bagaço da laranja. Fisicamente exausta de ter que dar conta de mil coisas ao mesmo tempo. E frustrada porque não fez nada direito, fez tudo meia boca. Não bastasse, não teve um respiro do dia para você”, desabafa ela, para quem hoje ainda parece surreal ouvir uma pessoa dizer coisas do tipo “ah, consegui ler tantos livros”. “Cara, na hora em que sento na cama, para deitar, a única coisa que quero é dormir. Durmo às 20h30 todo dia. Com esses dois agitados como são, se eu não tiver pelo menos umas oito horas de sono, não sou ninguém no outro dia, acordo uma mãe pior ainda”.
Ela pondera que outra coisa que que a pandemia tirou das mães que trabalham fora foi a oportunidade de ter um ambiente de trabalho. “Que é onde você toma o café quente, conversa com seus colegas, discute coisas produtivas que não sejam apenas (as operações de) multiplicação e a divisão, e a prova de não sei o quê. Onde você sente que está produzindo com o seu intelecto, que é independente da maternidade. Outro dia, eu estava aqui, falando com o meu chefe, e tive que pedir para eles irem para o quarto, porque não tinha como conversar ao lado de um menino que está gritando. E aí, nada sai bem feito, o que causa uma frustração, um sentimento de impotência, de incompetência”.
Também mãe de dois garotos, Miguel, 9, e Nicolas, 4, Angelita Mayra da Costa já trabalhava em casa (é cerimonialista), inclusive por conta dos filhos. “Mas sim, ficou um pouquinho mais complicado quando essas crianças passaram a ficar 100% aqui. Esse tempo que eu tinha quando eles estavam na escola era quando aproveitava para organizar reuniões com clientes, por exemplo. Tive que realmente me adequar”. Só fechar a porta não funcionou. “O menor começou a passar bilhetes sob a fresta, para chamar minha atenção, e, quando não funciona, costuma abrir a porta devargazinho e entrar debaixo do móvel (no qual ela trabalho)”, narra ela, que por vezes já teve que brincar com o cliente que está no outro lado da tela: “Entrou um ratinho aqui”.
Por sorte, a atividade de Angelita propicia um envolvimento mais estreito com o cliente. “Depois que eles já me conhecem, não tem problema até se as crianças conversarem ali, ao fundo, mas no primeiro contato eu sempre prefiro que eles não estejam. Antes eu tinha essa facilidade, agora não mais”.
Mesmo com todos os obstáculos, Angelita ressalta o fato de, em meio à pandemia, ter amadurecido muito “Neste momento de quarentena, por mais que exista essa culpa e a dificuldade de me entender dentro deste universo das falhas, existe uma mulher também que aprendeu a contornar e a valorizar cada vez mais aquilo que está vivendo. Porque por mais que tenha essa dificuldade, eu estou tão próxima deles, vendo cada detalhe do crescimento deles, participando de cada evolução de uma forma muito estreita. Tem esse benefício, e isso me fez crescer muito enquanto mãe: participar tão efetivamente da vida deles, e trabalhando essas questões que são difíceis. É doído, tem um pouco de sofrimento, mas tem essa questão extremamente produtiva, eu estar pertinho deles o tempo todo. Estamos junto nessa trilha”.
Mas tem mais: Ela diz que comecou a se entender um pouco melhor com o presente. “A gente tem escutado muito isso. Porque realmente a gente vive hoje não sabendo como vai ser o amanhã, então, o presente tem que ser vivenciado. Costumo falar que quando um fala: “Ah, mãe, estou com vontade de comer isso”, eu fico sempre tentando atender, porque o que temos para hoje é viver o presente. Quem sabe não seria bom deixar uma mensagem de otimismo, fazer com que esse momento difícil seja de compreensão, de resgate, de entender que, por mais que esteja tudo muito complicado, ao menos você está perto de quem mais ama na vida, o tempo todo”.
Num novo tempo, num novo mundo
Para Angelita, um aspecto assustador é pensar como é que vai ser a questão da escola das crianças quando as coisas voltarem 100% aos trilhos. Ela explica que já algum tempo vinha percebendo que a imagem de um professor com um giz e um apagador na mão já não era mais assim, tão atrativa para os representantes das novas gerações. “Depois disso tudo (a suspensão das aulas por tanto tempo), fico pensando como eles (professores) vão fazer para tentar prender a atenção dessas crianças. Acho que vai ser uma coisa muito complicada para as escolas, temo muito isso”, reconhece. O “vilão”, neste caso, seria a tecnologia. “Ela realmente toma as crianças, mas, claro, não é só disso que elas têm que viver. Por mais que o universo esteja mudando, existem conceitos lá atrás que eles precisam vivenciar, e não sei como a escola vai lidar com isso”.
Se Nathália e Angelita ainda conseguem (mesmo que aos trancos e barrancos) conciliar a vida profissional com o período de suspensão social, Rozane Fialho lembra que, em alguns casos, toda essa dedicação aos filhos vem desaguando em prejuízos profissionais, financeiros e emocionais. “Nesse sentido, foi gerado um sentimento de retrocesso nos direitos conquistados pelas mulheres, como a perda de espaço acadêmico, profissional e econômico. Tudo isso gera angústia, medo e insegurança”.
Instada a apontar alguma alternativa, ela diz que a recomendação não deveria ser direcionada às mulheres e/ou mães, mas sim a uma sociedade machista, que ainda sobrecarrega a mulher na criação dos filhos e nos cuidados com o lar. “As mulheres saíram da condição de ‘apenas’ donas de casa para mães provedoras financeiramente e responsáveis pela educação e cuidado dos filhos. A recomendação deveria ser direcionada aos homens, que ainda não se veem como responsáveis pela divisão de tarefas domésticas e pela criação dos filhos”.
Mesmo com algumas escolas já em funcionamento, ela pensa que o ideal não seria lutar pela reabertura dessas instituições (“expondo crianças ao risco de contágio e/ou transmissão”) ou mesmo a contratação de babás, pois, deste modo, a sobrecarga e impactos emocionais permaneceriam entre as mulheres, já que as funções de babás e professoras ainda é predominante exercida pelas representantes do que, ironicamente, um dia foi chamado de “sexo frágil”.
Não por outro motivo, neste Dia das Mães, ela deseja às mulheres/mães nada menos do que força, coragem e sabedoria. Inclusive na hora do voto, “para eleger políticos que as representem nas lutas pelos direitos por uma maternidade com menos efeitos negativos emocionais e profissionais”. “Para que sejam antes de mais nada mulheres autônomas sem grandes traumas com a maternidade”, conclui.
Christiane salienta a importância de delegar funções, bem como de procurar uma rede de apoio. “Ter pelo menos alguns minutos do dia para se dedicar a você é muito importante também. Manter habitos saudáveis de sono e alimentação são importantes para a saúde mental. Conversar com amigas mães também parece ser uma excelente forma de ouvir situações parecidas e se confortar”, indica.
Fatores como a religiosidade e a espiritualidade também podem contribuir como suporte nesse momento, independentemente da religião, e, sim, na relação do ser humano com o transcendente, com aspectos não materiais e não físicos da existência, uma meditação por exemplo, exalta Christiane. “Para muitas pessoas, essa espiritualidade está diretamente ligada à sua forma de interpretar o mundo, seu propósito da vida, as dificuldades encontradas, a morte e a fé. Inúmeros estudos cientificamente comprovados já relacionam os benefícios da espiritualidade e religiosidade no tratamento das doenças mentais”.