Antes que pessoas com comorbidades com mais de 55 anos fossem imunizadas em BH, estudantes que acabaram de entrar em cursos de medicina de faculdades privadas conseguiram se vacinar contra a Covid-19 desde a última semana, mesmo sem ter contato direto com pacientes. A vacinação dos jovens como trabalhadores de saúde encontra polêmica entre os próprios estudantes e é questionada na Câmara, mas justificada por pesquisadores.
O grupo de vereadoras Coletiva (PT) protocolou ontem um pedido para que a prefeitura esclareça os critérios de vacinação dos trabalhadores da saúde em meio a uma série de denúncias de possíveis irregularidades que o grupo diz ter recebido. “Estudantes dos primeiros períodos de cursos de saúde têm se vacinado, e queremos entender a prioridade, tendo em vista que outros trabalhadores, que nunca pararam, como motoristas do transporte público, não foram vacinados”, diz Stella Gontijo, membro do grupo e vice-presidente da Associação Nacional de Pós-Graduandos.
Entre alunos e agentes da prefeitura também parece haver confusão sobre os critérios para a inclusão no grupo prioritário. Os estudantes do segundo período de medicina da Unifenas, por exemplo, cursam aulas práticas presenciais como a de anatomia, mas não têm, atualmente, atividades em instituições de saúde nem interagem com pacientes, segundo um aluno, que pediu para não se identificar. Ainda assim, receberam uma declaração, assinada pela coordenação do curso, atestando que têm aulas laboratoriais e que, por isso, podem ser vacinados.
Em mensagens do grupo de WhatsApp de uma das turmas iniciais de medicina da universidade, ao qual a reportagem teve acesso, estudantes dão dicas sobre postos de saúde que aceitaram as declarações da faculdade. Uma das estudantes diz ter sido confrontada pela agente da prefeitura sobre o período em que está matriculada e ter mentido que estaria no quinto.
O Plano Nacional de Imunizações, do Ministério da Saúde, considera trabalhadores de saúde do grupo prioritário da vacinação os “acadêmicos em saúde e estudantes da área técnica em saúde em estágio hospitalar, atenção básica, clínicas e laboratórios”. O documento não discrimina se os laboratórios, por exemplo, incluem as aulas laboratoriais dentro das próprias unidades. À reportagem, o Ministério da Saúde afirmou que deveriam ser incluídos no grupo prioritário só estudantes que atuam no combate à pandemia, mas governos locais podem definir suas próprias estratégias.
Risco
Para a prefeitura, segundo o subsecretário municipal de Promoção e Vigilância da Saúde, Fabiano Pimenta, alunos que têm aulas laboratoriais correm alto risco de se contaminarem devido, por exemplo, à baixa ventilação nesses locais. Mas, de acordo com ele, declarações que apenas listam as aulas laboratoriais, sem citar as condições em que ocorrem, como frequência das atividades, são “genéricas” e esses estudantes não deveriam ter recebido a vacina. O modelo de declaração disponibilizado pela própria prefeitura, contudo, não pede que essas características sejam descritas. Em nota, a PBH explicou que “qualquer situação que não esteja nos critérios de elegibilidade para vacinar trabalhadores de saúde é passível de medidas legais”.
A prefeitura lembra que, em um Informe Técnico do próprio ministério, a pasta federal diz que todos os trabalhadores da saúde devem ser vacinados de forma gradativa. Por isso, mesmo quem está em home office, mas trabalha em estabelecimentos de saúde, pôde ser vacinado. De acordo com a prefeitura, a vacinação dos grupos em BH seguiu somente os critérios do ministério.
“Sobre as irregularidades constatadas, até o momento a SMSA-BH está levantando possíveis denúncias e organizando a realização de auditorias para sua apuração e para levantamento por amostragem das demais vacinações realizadas, a fim de adotar as medidas legais de responsabilização, uma vez que todos os cadastrados assinaram um termo de concordância e veracidade das informações prestadas”, completa o Executivo municipal.
Faculdades
Faminas, Uni-BH, Faculdade Ciências Médicas, UFMG e PUC declararam que os alunos aptos a serem vacinados têm aulas práticas presenciais ou atuam com pacientes. A Unifenas não respondeu.
Alunos se dividem entre discordância e felicidade pela vacinação
“Se estivesse tudo normal, sem pandemia, normalmente iríamos presencialmente conhecer serviços de saúde. Mas não estamos fazendo isso. Foi só uma maneira legalizada de vacinar gente rica”, opina um estudante de 24 anos do segundo período de medicina da Unifenas, que pediu para não ser identificado e conta ter escolhido não se vacinar.
Outra estudante, de 18 anos e no primeiro período de medicina da Faminas, explica que se vacinou, com uma declaração de vínculo com a faculdade, porque desde o primeiro ano do curso os alunos acompanham profissionais em unidades de saúde e têm contato com pacientes presencialmente. Ela explica que suas aulas desse tipo são de 15 em 15 dias. Segundo a prefeitura, essas atividades em campo permitem a vacinação.
“Eu acho que muita gente dos grupos de risco deveria ter sido vacinada e não deixo de concordar com as críticas (à vacinação de estudantes dos primeiros períodos). Óbvio que eu queria ter contato com pacientes, mas esta não é uma época normal e não tinha necessidade de fazer isso agora, porque ainda tenho seis anos de faculdade pela frente. Se a gente, do primeiro período, não estivesse tendo esse contato, não teria entrado na prioridade da vacinação. Mas não vou mentir que não fico feliz de ter me vacinado, porque a gente sabe que em faculdade tem muita gente sem respeito pelo distanciamento”, conta a estudante.
‘É uma situação ética’, diz professor
“No ‘lato sensu’ (sentido amplo), se a pessoa pode se enquadrar como trabalhadora da saúde, pode se vacinar. Mas, no ‘stricto sensu’ (sentido específico), a situação de risco dela pode ser limitada. É uma situação ética. Qualquer estudante pode chegar com a prova e dizer que está na lista prioritária”, avalia o professor emérito de medicina da UFMG Dirceu Greco, para quem a interpretação sobre qual risco é mais alto para contaminação por Covid-19 é subjetiva e abre espaço para que qualquer estudante da área da saúde possa ser vacinado conforme o PNI.
Já o professor Geraldo Cury, também da UFMG, pondera que “o aluno não está em sala de aula porque não foi vacinado, mas alunos do primeiro período já têm contato com pacientes”. “Os estudantes devem ser vacinados porque têm contato com pessoas com problemas variados de saúde nas unidades de saúde, e não está escrito na testa de quem tem Covid-19 que a pessoa tem a doença”, pontua o especialista.
“O PNI fala em trabalhador da saúde, e não em profissional da saúde”, concorda o imunologista José Cássio de Moraes.
Quem pode ser vacinado como trabalhador de saúde
De acordo com o PNI, 14 categorias profissionais são consideradas como trabalhadores de saúde para a vacinação prioritária: médicos, enfermeiros, nutricionistas, fisioterapeutas, terapeutas ocupacionais, biólogos, biomédicos, farmacêuticos, odontólogos, fonoaudiólogos, psicólogos, assistentes sociais, profissionais da educação física, médicos veterinários e seus respectivos técnicos e auxiliares; agentes comunitários de saúde, agentes de combate às endemias, profissionais da vigilância em saúde e os trabalhadores de apoio, como recepcionistas, seguranças, trabalhadores da limpeza, cozinheiros e auxiliares, motoristas de ambulâncias e gestores.
Para receber a vacina, porém, eles necessariamente precisam comprovar que atuam em estabelecimentos de serviços de saúde, como hospitais, clínicas, ambulatórios, unidades básicas de saúde, laboratórios, farmácias, drogarias. Academias de ginástica, clubes, salões de beleza, clínicas de estética, óticas, estúdios de tatuagem e estabelecimentos de saúde animal não estão incluídos na lista.
“Nesse sentido, um biomédico, por exemplo, cujo vínculo ativo como trabalhador de saúde é em uma clínica de estética, não está contemplado no grupo prioritário para vacinação. No que se refere aos profissionais de educação física, podem se imunizar apenas os que atuam em estabelecimentos de assistência, vigilância à saúde e regulação e gestão à saúde na cidade de Belo Horizonte. Ou seja, que trabalham em clínicas, ambulatórios e unidades básicas de saúde, por exemplo. Qualquer situação que não esteja nos critérios de elegibilidade para vacinação de trabalhadores de saúde é passível de auditoria e adoção de medidas legais cabíveis”, informa a prefeitura.