No Aglomerado da Serra, Região Centro-Sul de Belo Horizonte, duas construções chamam a atenção na paisagem: o centro cultural Lá da Favelinha, com sua fachada de cortinas vermelhas gigantes e um parklet feito a partir de carteiras escolares quebradas, e a casa do artista Kdu dos Anjos, que, com suas paredes de tijolos expostos, ganhou, em fevereiro, o prêmio Casa do Ano 2023 em um concurso internacional de arquitetura. Mas esses destaques são resultado de soluções criativas que estão espalhadas por milhares de casas erguidas no entorno por mãos calejadas pela experiência.
Ambas as construções são do Coletivo Levante, que desenvolve projetos com referências à arquitetura popular, constituída por ideias e soluções arquitetônicas criadas nas periferias. “Os pedreiros que moram aqui no aglomerado são os mesmos que constroem prédios enormes pela cidade. São pessoas com muita experiência de construção”, explica Marina Vilela, arquiteta do Levante.
O mestre de obras Dário de Carvalho Leitão, de 65 anos, também destaca a capacidade dos profissionais da comunidade. Ele mesmo começou a trabalhar com construção aos 14 anos de idade, como auxiliar, sem formação. “Tem quem precise de um aprimoramento, assim como em todo lugar, mas tem muita mão de obra boa e qualificada na favela”, afirma.
Dário é um dos fundadores do Arquitetos da Vila, escritório criado em 2019 e que busca tornar a arquitetura acessível a pessoas de baixa renda. Desde então, já foram realizadas mais de 400 reformas e as que são feitas no aglomerado contam com a ajuda de pedreiros da própria comunidade.
“A gente aprende o tempo inteiro com eles. Aprende mais do que ensina”, sustenta Wanda Foresti Bottrel Reis, arquiteta e uma das líderes da empresa.
PEDREIROS POR NECESSIDADE
A casa de Belassina de Sousa Santos, de 62, é uma das que passaram por obras do Arquitetos da Vila. Na moradia, que teve o banheiro reformado, moram ela e a filha Jeane, de 37, que é uma pessoa com deficiência.
“O banheiro estava muito feio, o chão estava todo arrebentado. Tinha mofo, infiltração, e não era adaptado para ela [Jeane]”, relata Belassina. Essa foi a primeira grande obra na casa desde que ela se mudou há 11 anos.
Sempre que algum cômodo precisa de cuidado, ela conta com a ajuda de familiares, como um genro e um sobrinho que fizeram reparos na cozinha e nos quartos. “As paredes estavam caindo aos pedaços e meu sobrinho falou: ‘Daqui a pouco essa casa desaba em cima de vocês duas'", relata.
Hoje Belassina mostra com orgulho o resultado das obras e diz sentir-se segura, sem as rachaduras nas paredes. Porém, não sente o mesmo na área externa. Há alguns anos, um vizinho cavou embaixo da laje do quintal dela e, enquanto a obra não termina, há um espaço oco que a preocupa.
Pelo lote, é possível ver materiais de construção aproveitados ao máximo. Alguns degraus de pedra que tinham rachaduras foram reparados com argamassa que sobrou da reforma do banheiro. Acima, há um portãozinho feito de placas de PVC – invenção do filho da dona da casa. “Ele é o meu pedreiro”, conta.
Andares de pai para filho
Ao redor da casa de Belassina há moradias de até quatro andares. A projeção vertical é uma saída para garantir iluminação e ventilação. A arquiteta Wanda Foresti explica que há também uma questão de vínculo familiar. “O filho vai construir sua casa na laje do pai. E o neto vai construir na laje do filho”, diz.
A arquiteta relata que encontra frequentemente algumas falhas nas casas que vai reformar, como banheiros sem caimento de água para o ralo e escadas com degraus se tamanhos uniformes. O que não a impede de enxergar coisas positivas na arquitetura da favela.
“Algumas casas têm uma janela num lugar mais alto, o que não é algo comum – a gente normalmente estabelece uma altura de, por exemplo, um metro do chão. Mas os moradores colocam lá em cima, porque eles sabem que vão vir de lá o vento e a luz que a casa precisa”, explica.
Wanda defende que esse tipo de arquitetura da favela não pode ser desprezado. “A gente vê um tanto de casa premiada na Noruega, vários projetos chiques com janelas completamente descasadas, cada uma em um canto, por que aqui não pode ter também?”, argumenta.
Diálogo entre teoria e prática
A professora Silke Kapp, da Faculdade de Arquitetura da Universidade Federal de Minas Gerais, defende que as criações arquitetônicas das comunidades não sejam destaque apenas quando um projeto recebe prêmios. “Parece que apenas quando existe um projeto em que arquitetos são premiados é que a gente passa a olhar para essa arquitetura na favela como algo legítimo”, justifica.
A professora explica que a arquitetura como profissão só foi instituída no Brasil nos anos 1930. “Se você pensar o tanto de coisa que foi construída antes disso, algumas que são patrimônios históricos e a gente hoje acha incrível, fica claríssimo onde esse conhecimento de construção estava”, explica.
Amanda Castilho, arquiteta do Levante, defende que os construtores das periferias sejam sempre ouvidos pelos arquitetos. “É fundamental o conhecimento de um pedreiro que fala: ‘Ali eu faço de um jeito, eu assento o tijolo dessa maneira, o cimento daquela, faço uma mistura específica, porque sei que funciona nesse lugar’. Eu acho importante complementar os conhecimentos, não só trocar um pelo outro”, explica, defendendo um diálogo construtivo entre a sabedoria que vem da prática e o conhecimento técnico e acadêmico.