A liberdade, é ela quem chega e dá sinais na alma de que, para além da interpretação, compor pode ser um ato de afirmação, uma busca pela autonomia, uma declaração de resistência ou a simples vontade de voar por frases próprias. Algo está em rotação em uma cultura historicamente dominada por compositores homens e intérpretes mulheres estabilizada na MPB a partir dos anos 60, quando Elis, Gal e Bethânia, que nunca compuseram, passaram a lançar novos autores. Uma safra de trabalhos vibrantes, criados e interpretados recentemente por mulheres de origens e cargas culturais diversas, atesta o novo tempo.
Anaadi, Carol Andrade, Irene Atienza, Dani Gurgel, Maria Leite e Lívia Mattos defendem um repertório autoral em álbuns de potencial de destaque na canção brasileira. Elas aceitaram o convite da reportagem para uma roda de conversas no Sesc Pompeia sobre os dilemas e as vitórias da composição feminina e da relação autor-intérprete-músico nem sempre simpática à figura da cantautora.
Existe uma afirmação natural no discurso da gaúcha Anaadi, ou Ana Lonardi. De voz grande e cheia de recursos, seu primeiro álbum, Noturno, vem com produção cuidadosa nos detalhes e versos como “minha beleza mora atrás do que se pode revelar no espelho / meu corpo não é fruta nem capa de revista / é toque, sentimento e surpresa”. Sua fala segue o mesmo tom. Apesar de mais mulheres comporem o que cantam, ela percebe um jogo ainda desigual. “Somos desumanizadas como compositoras, como se não pudéssemos errar. Um autor homem admite que errou certa composição e isso vira um charme. Mulheres, não.” Ela diz que o surgimento de mais cantautoras é um sinal dos tempos. “Um retrato do que vivemos hoje. Sempre fomos muito intérpretes, mas eu sempre senti necessidade de cantar minha própria história.” Das 11 faixas de seu álbum, ela só não assina Samba e Amor (Chico Buarque) e A Flor e o Espinho (Nelson Cavaquinho, Guilherme de Brito e Alcides Caminha). Por Querer, uma parceria com Roberto Menescal, traz o violão do parceiro.
A baiana Lívia Mattos, conhecida até então como “a sanfoneira de Chico Cesar”, tem recebido elogios por seu álbum de estreia, Vinha da Ida. Ela quebra não só o roteiro das intérpretes dos “homens clássicos” como eleva seu instrumento a outros discursos de música popular. Chegar com um disco 100% autoral foi um risco assumido, ela sabe, mas os impulsos decidiram o caminho.
“Eu acredito na liberdade que se conquista, e esse é um movimento que tem a ver com o século 21. Estamos fazendo essa transição.” Olhos de Teresa, a bela canção que fez para a avó, tem se revelado um destaque natural. “Os olhos de Tereza têm mar dentro, uma represa/Os olhos de Tereza, calmos, como quem esqueceu a pressa.”
Além da liberdade, autonomia também é algo que se conquista quando se assina o que se canta. “E eu adoro poder ter participado de todo o processo do disco e poder resolver fazer um show de sanfona e voz se for preciso.” Ser cantora da própria obra, ela diz, é “um ato de resistência”.
Haveria mais muros a serem derrubados se Irene Atienza não tivesse a força que tem demonstrado ter desde que chegou da Espanha para cantar samba na Lapa do Rio. Mulher influenciada no berço da cidade de Santander pelo flamenco genético, seu canto equilibra a lágrima e a solidez emocional em um timbre raro, forte, grave. O álbum autoral que acaba de lançar é Salitre, com um dueto arrebatador de Grãos de Sal, ao lado de Lenine. Ao todo são sete músicas autorais, em espanhol e português, e mais quatro versões que contam dos países por onde passou. Espanha (Peces de Ciudad, de Joaquín Sabina), Brasil (El bien del mar, Dorival Caymmi), Argentina (Piedra y Camino, de Atahualpa Yupanqui) e Cuba (Demasiado, de Silvio Rodríguez). A origem de seu processo de composição pode ser considerada “invertida”. “Eu escrevia poesias com 8 anos. Fui buscar logo cedo na composição o que eu gostaria de falar.”
Um outro caminho levou a paulistana Dani Gurgel para a composição. Ela vem sobretudo do jazz, e isso explica seu pensamento instrumental mesmo quando faz canção. Sua voz não tem a formatação das cantoras clássicas. Ela é limpa e curta na extensão, mas está ali como se fosse mais um instrumento em meio aos outros músicos. Zimbadoguê é cheia de suingue, de prosódia ligeira e improvisos estonteantes de Clube da Esquina. A outra canção do mesmo EP chamado Ruídos é Na Frente.
Dani, filha da pianista Débora Gurgel, conhece bem a história. Não basta ser bom quando se é mulher na música, é preciso provar “O mundo dos músicos ainda é muito preconceituoso”, ela diz. As máximas criadas pelos instrumentistas que se referiam às cantoras nos anos 60 pejorativamente como “canários” não estão enterradas. “Cantar é coisa de quem não sabe música”, eles diziam. Imaginem se soubessem que as composições não parariam em Dolores Duran, Maysa, Rita Lee, Joyce, Fátima Guedes… “As cantoras são testadas por músicos que querem saber se elas sabem o compasso de tal nota específica. Algumas podem não ter estudado, mas podem ser também as pessoas que mais sentem a música naquela sala ali. O preconceito se alimenta de coisas bestas.”