Meses depois de profissionais de laboratórios privados que realizam testes de Covid-19 em Belo Horizonte serem vacinados, pesquisadores da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) receberam uma dose da vacina contra o novo coronavírus, alguns deles apenas na última semana. Atuantes na linha de frente da pesquisa sobre o vírus, desenvolvendo e realizando diagnósticos da doença e até de potenciais vacinas, eles relatam as dificuldades pessoais e profissionais de seguir com os estudos ao longo da pandemia da Covid-19.
“Ser vacinado era uma grande briga nossa, porque profissionais de laboratórios privados da cidade, grandes e pequenos, já tinham sido. Eu não era trabalhador da saúde antes. Agora, tenho responsabilidades morais, éticas e legais que não existiam antes. Uma instituição de saúde nos ligou no meio do dia, por exemplo, dizendo que precisava do resultado de exame da amostra que tinha enviado de manhã, porque o paciente teve morte cerebral, e um resultado negativo seria a chance de a família autorizar a doação de órgãos dessa pessoa”, exemplifica Renan Pedra, professor do Instituto de Ciências Biológicas (ICB), da UFMG.
Seu grupo de trabalho realiza até 120 testes diagnósticos de Covid-19 diariamente, em parceria com a Secretaria de Estado de Saúde (SES-MG), e foi responsável por detectar uma nova variante do vírus em Belo Horizonte, no último mês. Enquanto aguardava a vacinação, Pedra teve um quadro leve de Covid-19, em março deste ano, mas conseguiu se imunizar na última semana. Já profissionais de laboratórios como Hermes Pardini e Geraldo Lustosa começaram a se vacinar em fevereiro.
Como Pedra, alguns pesquisadores podem e têm se vacinado na atual fase de imunização de trabalhadores de saúde acima dos 18 anos, em BH, pois realizam testes laboratoriais de Covid-19, por exemplo. Antes disso, a prefeitura da capital já permitia a vacinação nos casos em que as instituições interessadas dessem o detalhamento do risco envolvido no trabalho dos cientistas.
O Programa Nacional de Imunizações (PNI) não inclui especificamente os cientistas na lista de grupos prioritários, mas permite que acadêmicos da saúde que atuam em serviços da área sejam imunizados. A Sociedade Brasileira de Imunologia (SBI) e a Sociedade Brasileira de Virologia (SBV) pressionam o Ministério da Saúde desde meados de março pela inclusão dos cientistas no grupo prioritário, e pelo menos mil pesquisadores aderiram a um abaixo-assinado com o mesmo propósito.
“O trabalho (dos cientistas) é exaustivo e não se limita a ‘horários comerciais’”, diz trecho da nota da SBI, assinada pela doutoranda Júlia Castro, do CT-Vacinas, vinculada à UFMG e à Fundação Oswaldo Cruz. “Existe uma pressão por resultados satisfatórios, porque tem muitos olhos voltados pra nós neste momento”, diz.
Até meados de abril, de acordo com Júlia, metade dos pesquisadores do CT-Vacinas ainda não havia se vacinado, inclusive quem dependia do transporte coletivo para ir ao laboratório. Agora, segundo uma das pesquisadoras associadas, a professora Ana Paula Fernandes, 24 dos 26 cientistas foram vacinados. Ela lembra que uma contaminação, caso se transforme em surto, pode paralisar diagnósticos e pesquisas por dias.
Na Universidade Federal de Juiz de Fora, pós-graduandos que atuam com testes diagnósticos não foram vacinados. No grupo coordenado pelo professor Cláudio Galuppo, que atua com mapeamento genético de variantes, alunos trabalham com amostras do vírus. “Nossos estudantes de mestrado e doutorado estão na fila esperando a decisão sobre a vacinação”, conta.
A reportagem procurou a universidade e o Poder Executivo de Juiz de Fora para saber se há previsão de vacinar alunos que atuam com testes, mas não recebeu retorno.
Critérios seguidos
A PBH informa que vacinou os pesquisadores, conforme demanda formalizada pelas respectivas instituições. Para a imunização, a Secretaria Municipal de Saúde realizou uma análise técnica, e o critério utilizado foi vacinar os profissionais que fazem parte do grupo de trabalhadores da saúde e apresentam, de forma objetiva, uma maior exposição ao risco de contágio pelo vírus Sars-Cov-2. Foram imunizados médicos, além de técnicos e auxiliares de laboratório.
Pedido
Segundo a prefeitura, para que mais profissionais sejam vacinados, além das novas remessas de vacina, é preciso que as instituições façam a solicitação formal à PBH.
Pesquisas enfrentam obstáculos
A pandemia sobreveio em um momento de crise na ciência brasileira: neste ano, o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) anunciou que só pagará 13% dos pedidos de bolsas para estudantes, por exemplo. O corte de verbas na UFMG para este ano, segundo a reitora Sandra Goulart, chega a 19%, ou R$40 milhões.
Após avançar nos testes de uma tecnologia que permite fazer teste diagnóstico de doenças virais como dengue, Covid-19 e zika em uma única plataforma com o uso de inteligência artificial, o professor do Departamento de Física da UFMG Juan Carlos González diz que o projeto corre o risco de ser encerrado pela falta de financiamento para a equipe, que inclui estudantes da pós-graduação.
“Não conseguimos recursos e não temos o principal equipamento da pesquisa dedicado para nós. Então, nós conseguimos utilizá-lo só dois dias por semana. Sem isso, não conseguimos fazer nosso trabalho rapidamente e projetar novos experimentos. Tenho dois bolsistas nesse projeto, mas sem ter como pagar mais”, descreve.
No laboratório coordenado pelo professor Renna Pedra, no ICB da UFMG, equipamentos também precisaram ser tomados emprestados de equipes que não estavam trabalhando presencialmente no início da pandemia. Em novembro, o laboratório precisou adquirir equipamentos próprios, pois o trabalho dos colegas estava sendo retomado. “Além do legado de conhecimento na pandemia, vamos criar um legado de estrutura. Esses equipamentos, métodos e procedimentos implementados podem ser usados no que vier no futuro de maneira mais rápida”, diz o pesquisador.
No CT-Vacinas, que desenvolve imunizantes contra a Covid-19, os pesquisadores precisaram recorrer a fontes além da universidade para dar continuidade aos testes da vacina, que pode estar disponível em 2022. A Prefeitura de Belo Horizonte (PBH) se comprometeu, no último mês, a investir R$30 milhões no projeto.