Não dá mais para saber o que Oscar Niemeyer acha de a poluição da Lagoa da Pampulha, em Belo Horizonte, impactar as suas obras. Ou o que pensa o mestre Aleijadinho sobre os efeitos do tempo contra os Profetas que instalou em Congonhas. Mas a autora de uma das obras mais fotografadas e simpáticas do estado não só ainda pode ser questionada, como luta pela preservação do seu mais conhecido trabalho. E depois de a reportagem do Estado de Minas denunciar que a estátua do Juquinha, um dos símbolos da Serra do Cipó, está em processo acelerado de deterioração e sendo alvo de vândalos, a artista plástica que eternizou o sorriso do ermitão das montanhas conta mais sobre a história do personagem da sua infância e do prazer que sente por a imagem ser tão querida. Com uma típica e hospitaleira mesa de café, repleta de bolos, frutas, bolachas e outros quitutes, Virgínia Ferreira abriu sua casa e ateliê no Bairro São Luiz, na Pampulha, na capital mineira, para lembrar de fatos, lendas e clamar pela a salvação do Juquinha da Serra do Cipó.
Como foi esculpir o Juquinha?
Morei um ano na Serra do Cipó. Na maior simplicidade, tentando viver realmente como ele vivia. Totalmente integrada naquela natureza maravilhosa e silenciosa. Rodeada de pássaros. Tomava banho na água do rio. Morava em uma casinha simples de fogão de lenha e com uma parte até tombando. Achei essa casinha pedindo lá na fazenda Alto Palácio (em Santana do Riacho) Convivendo com cobras e lagartixas que eram os animais que mais se via por lá. Fizeram para mim um ateliê de palha, porque em Morro do Pilar tem uma tradição de utilização da palha de um coqueiro (para construir) e muita gente faz casas lá com essa cobertura. Me mandaram dois caminhões de argila lá do Bairro Barro Vermelho de Conceição do Mato Dentro. Fiz a maquete e com a argila ampliei a maquete. A estrutura era de madeira que preenchi com a argila pela técnica de escultura italiana. Fizemos 26 fôrmas. Depois veio a fundição, que resultou em 26 partes de cimento e a armação interna de aço. Tive a ajuda de 40 pessoas: pedreiros, cozinheiros voluntários e o padre Marcelo, que hoje é bispo. Trabalhava cedinho e terminava às 21h. A parte da argila tinha de ser acelerada para não trincar. No total foi um ano de trabalho que terminei em 1987.
Qual a situação da estátua do Juquinha hoje?
O Juquinha está realmente deteriorado. São 20 anos desde a última reforma. Ele está deteriorando muito. Mas ainda está em tempo de ser restaurado. Porque a restauração não faz milagres. Não faz milagres. As igrejas estão sempre sendo restauradas, os monumentos também precisam desse cuidado. Precisa de trabalhos de prevenção e manutenção. No caso do Juquinha, seria necessário esse cuidado a cada cinco anos, porque ele é muito exposto às intempéries. Ele está em uma área de muita variação de temperatura. Ao mesmo tempo que tem neblina, vem o sol, passa um pouco está chovendo, vem neblina de novo, muito vento e isso tudo promove a degradação da estátua. Umidade, temperatura. Isso promove dilatações que agridem o cimento e a ferragem. Já foram feitas duas restaurações nele. Uma eu banquei do meu bolso. A última ocorreu há 20 anos com verba da Cemig por meio do prefeito José Fernando, de Conceição do Mato Dentro. A pele dele, que é a primeira camada de cimento, já está sendo atingida. E é o mais importante por ser o que o público vê. Os detalhes e a expressão. É a mais difícil de restaurar, por ser frágil e não aceitar muitas emendas.
Quem era o Juquinha para você?
O Juquinha, para mim, é a lembrança da minha infância, de quando eu passava férias na casa dos meus avós, em Conceição do Mato Dentro. Ele sempre andando pelas montanhas, às vezes na beira da estrada. Pedia ajuda, pedia fósforo, pedia pão e o que se tinha se dava para ele e o que ele tinha ele dava de volta, geralmente buquês silvestres que ele mesmo fazia. Às vezes, a gente não queria as flores, mas ele jogava dentro do carro um maço de sempre-vivas em agradecimento.
Como era o Juquinha?
Ele era um velhinho pequenininho, muito pitoresco e generoso. Era uma pessoa de traços fortes e marcantes, como o seu irmão. E isso de certa forma ajuda o escultor. Sempre usava uma capanga para guardar as coisinhas que ele guardava, como pão, fósforos e flores. Vestia um paletó que ganhava das pessoas por causa do frio da região onde ele viu, mas era uma localidade com grande variação de temperatura. Tinha também um sapato todo furado porque a região é de muita pedra. Ele vivia de ganhar o que a misericórdia dos outros lhe dava. Ele era literalmente um ser da montanha. Eu escutava que ele dormia debaixo da Lapa. Uma pedra que tinha lá na beira da estrada. Só passavam três, quatro carros por dia nessa estrada, um deserto aquilo lá. O Juquinha também pegava muita carona no ônibus de viagem. Me lembro de ter visto ele sentado na poltrona do ônibus comendo uma laranja inteira descascada com a unha e uma banana inteira. Conheci o quartinho dele em uma casa atrás da montanha. Era uma casinha bem baixinha, de telhado baixinho mesmo, muito pequenininha. E o quartinho dele era pouco maior que a cama. Tudo era arredondado, paredes piso, porque era feito com o barro de lá, moldado pelas mãos.
Você se lembra de casos do Juquinha?
Minha mãe falava: “se você estiver grávida, não olhe para o Juquinha ou seu neném vai nascer parecendo com ele (risos). Quando eu o via chegando nas ruas em Conceição (do Mato Dentro), era uma meninada grande atrás dele com pau, correndo atrás dele, puxando a roupa dele, falando que iam namorar com a sobrinha dele e ele ficava uma fera, porque ele gostava demais dessa sobrinha. O povo fechava a janela, fechava a porta: ‘o Juquinha está chegando!’. Uma vez, entrou uma mulher muito bonita no ônibus de viagem. Tinha um decote cavado, saia curtíssima, salto alto, brincões nas orelhas. Aí o chofer do ônibus perguntou para o Juquinha: ‘o que você acha de mais bonito nessa moça?’. Aí ele olhou, olhou, olhou e disse que eram os brinquinhos… os brinquinhos (risos). Um outro casinho que eu já escutei dele é de uma amiga minha de Dom Joaquim. Eles estavam comendo um prato bem saboroso que o Juquinha gostou muito. Daí perguntaram para ele: “Juquinha, se puder, depois passa lá em casa para comer conosco’. Daí ele respondeu: ‘eu vou mesmo, porque eu gostei muito desse conosco que vocês estão comendo’ (risos). E o caso de ele ter morrido duas vezes é verdade mesmo. Tem gente que diz que ele viveu e morreu sem vezes. Mas duas eu já ouvi mesmo, da cunhada dele. Ela disse que ele deitou e morreu. Daí quando já estavam se preparando para enterrar, ele abre os olhos. Mas dois dias depois ele deitou de novo e aí morreu mesmo, e enterraram ele. Não sei onde. Tenho inúmeros casos e já pensei até que pode ser uma ideia escrever um livro sobre a história dele.
Há muitas histórias que são lendas do Juquinha. Você se lembra de algumas?
Diziam que ele mamava na loba. Sempre isso era falado. ‘O Juquinha só viveu porque passou uma loba lá e deu de mamar para ele’. Diziam, também, que ele comia de tudo o que existia na montanha: cobras, escorpiões, aranhas e lagartixas e tudo mais que tinha por lá.
De onde veio a ideia de esculpir o Juquinha?
Estava instalando um painel de azulejos no Centro de Conceição do Mato Dentro por encomenda de um prefeito. Então um amigo, chamado Teiado, que tocava em Conceição, me apresentou outro prefeito, o Clério Lima (então prefeito de Morro do Pilar). Tinha acabado de me formar em Belas Artes, tinha um filho pequeno, estava separada, sem um tostão no bolso, logo aceitei a encomenda de uma escultura. Primeiro, sugeri uma coisa minha, autoral, mas ele pediu para fazer uma em homenagem ao Juquinha que tinha morrido três anos antes. Falei então: ‘vamos!’. Fiquei procurando onde fazer. O local onde está hoje foi justamente onde eu queria. Ali, no Alto Palácio, consegui ter a escultura, o horizonte infinito, a natureza onde o Juquinha viveu, tornando o trabalho completo e integrado. Por ser no chão, pode ter a participação popular para quem quiser chegar perto dele poder abraçá-lo, passar a mão, tocar. Para as pessoas sentirem o calor humano.
Como seria a restauração do Juquinha?
Já tenho um projeto aprovado em dezembro de 2022 na Lei de Incentivo à Cultura Federal. Esse projeto prevê trabalho de dois meses de restauração do Juquinha por meio de renúncia fiscal e patrocínio. Já tenho um parceiro que se comprometeu em dar 20%. Estou procurando os demais. Minha ideia é reunir umas 15 pessoas. Vai ser necessário uma tenda e ela vai ficar aberta para que o público possa ver o trabalho e aprender também. As partes perdidas serão remodeladas e fundidas na estátua, que receberá limpeza e banho de fungicida.
Você ainda pinta ou esculpe o Juquinha?
Eu ainda faço uma reprodução pequena da maquete. Faço umas 15 peças por ano. Pela movimentação da forma, da posição dele sentado, a reprodução não é tão simples. A forma não é fácil, estraga muito. É trabalhoso e caro.
Conte um pouco da sua trajetória artística.
Antes eu fazia física, mas um professor italiano me aconselhou a fazer belas artes. No início tudo começou a dar certo, apesar de na minha família ninguém ter veia artística. Descobri um talento que é um presente de Deus para isso. Descobri que tinha talento para trabalhos realistas e minha primeira obra foi um gosto do Milton Nascimento, que na época fazia sucesso com a música Coração de Estudante. Fui indicada para fazer o busto do doutor Clóvis Salgado no Palácio das Artes. Depois foi um crescente de obras e restaurações. Minhas obras-primas foram o Juquinha e uma escultura de nove metros chamada “Mater”, que está no Águas do Treme. Gosto muito também de uma escultura de bronze, que ainda tenho, que se chama “Mãe e filho”, que fiz logo que meu filho nasceu. Na pintura tenho uma tendência para o Impressionismo. Na escultura a minha tendência é para o Expressionismo. Vários trabalhos também lembram o Cubismo.