O 67º Festival de Berlim (9/2 a 19/2) escolheu um longa brasileiro para competir pelo Urso de Ouro. Joaquim é o nome dele. O título dessa cinebiografia ficcional certamente seria diferente e mais óbvio – Tiradentes – não fosse Marcelo Gomes o diretor do longa, filmado em Diamantina, ”com DNA totalmente mineiro” e com o qual ele pretende ”levar a Serra do Espinhaço para o mundo”.
Ao cineasta não interessava fazer um retrato do herói da Inconfidência Mineira que, na infância, ele chegou a ”confundir com Jesus Cristo”. Seu objetivo com esse filme era desvendar ”como é que esse Joaquim, soldado da Coroa, se rebela contra essa Coroa da qual era um alferes? Como foi a construção dessa consciência política, considerando a ética social do Brasil do século 18?”.
Escarafunchar a história do Brasil colonial neste momento do país é algo que Gomes considera ”muito importante e crucial para nos ajudar a refletir sobre as fraturas sociais que esse processo de colonização cruel que tivemos provocou”. Como se trata de entender o percurso que leva um militar a se converter num insurreto, Joaquim procura mostrar como seu personagem-título ”se relacionava, tinha aflições, desejos, contradições, afetos. Era um brasileiro comum que estava construindo essa consciência”.
A paixão por uma escrava cuja liberdade ele almeja comprar é outro vetor da trama, sobre o qual o cineasta prefere não falar. Quer deixar ao espectador a chance de descobrir a história na tela, assim como a tarefa de ”imaginar o link do passado com o presente”. Mas adianta que, ”se você pensar que política é a relação com o outro, então esse é um filme político”.
Como demonstrou em seu longa de estreia – Cinema, aspirinas e urubus, também um filme de época, ambientado nos anos 40 da Segunda Guerra Mundial e no qual não se ouve um tiro – para falar de um grande tema, Marcelo Gomes sussurra. Desta vez, o diretor colou a câmera nos personagens e abdicou da ambição de fazer a Diamantina de hoje parecer a Ouro Preto do século 18, até porque sua intenção era reproduzir a ”paisagem cruel, rude, árida, dramática”das viagens de Joaquim por um Brasil que ”se forjava fazendo a marcha para o Oeste, em busca do ouro”.
VÍCIO
Outra característica do diretor de Viajo porque preciso, volto porque te amo (com Karim Aïnouz), Era uma vez eu, Verônica e O homem das multidões (com Cao Guimarães) que se repete neste longa é a mistura de atores profissionais e não profissionais no elenco. ”Continuo com esse vício”, brinca. Desta vez, no entanto, a mescla incorpora também atores profissionais de Portugal (que assina a coprodução do longa) com brasileiros, entre eles nomes do Grupo Galpão.
Embora considere ”uma honra” competir pelo Urso de Ouro com ”cineastas como Aki Kaurismaki”, Gomes afirma que o que mais lhe interessa ao participar do Festival de Berlim é ”a oportunidade fantástica” de conquistar visibilidade para um filme ”realizado com baixo orçamento e com muito poucos recursos para o lançamento”. Seu sonho é estrear Joaquim no Brasil em 21 de abril. Falta convencer o distribuidor Jean-Thomas Bernardini, da Imovision. O júri da competição em Berlim será presidido pelo holandês Paul Verhoeven (Instinto selvagem, Showgirls, Elle).
Joaquim seria inicialmente uma produção de encomenda de um telefilme para a Espanha, que realizava uma série sobre os libertadores da América. A crise financeira europeia abortou o projeto, mas não a paixão de Gomes por ele. Junto com seu produtor João Jr., o diretor passou a tentar viabilizar o título no Brasil. ”Foi uma guerrilha linda e apaixonante”, afirma. A ”guerrilha” durou aproximadamente sete anos até tirar do papel a produção, realizada com aproximadamente R$ 2 milhões, um orçamento modesto para os atuais padrões brasileiros e modestíssimo para um filme de época.
Para o papel-título Gomes escalou o ator Julio Machado, cujo trabalho ele conhecia ”da peça Incêndios e de pequenas participações em outros filmes”. Viu em Machado ”o frescor de ser uma cara nova”, mas não só. ”Ele tem o physique du rôle, o talento e uma empatia que faz com que você fique com ele (o personagem) o tempo todo, porque nosso Joaquim é um herói solitário.” Agora é esperar fevereiro para ver como Berlim receberá a Serra do Espinhaço.
A COMPETIÇÃO PELO URSO
Veja os filmes selecionados pelo 67º Festival de Berlim
>> Ana, mon amour, de Calin Peter Netzer (Romênia, Alemanha, França)
>> Beuys, de Andres Veiel (Alemanha)
>> Colo, de Teresa Villaverde (Portugal)
>> The dinner, de Oren Moverman (EUA)
>> Félicité, de Alain Gomis (França, Senegal, Bélgica, Alemanha, Líbano)
>> The Party, de Sally Potter (Reino Unido)
>> Pokot, Agnieszka Holland (Polônia, Alemanha, República Tcheca, Suécia, Eslováquia)
>> Teströl és lélekröl, de Ildiko Enyedi (Hungria)
>> Toivon tuolla puolen, de Aki Kaurismäki (Finlândia)
>> Una mujer fantástica, de Sebastián Lelio (Chile, Alemanha, EUA, Espanha)
>> Bamui haebyun-eoseo honja, de Hong Sangsoo (Coreia do Sul)
>> Helle nächte, de Thomas Arslan (Alemanha, Noruega)
>> Joaquim, de Marcelo Gomes (Brasil, Portugal)
>> Mr. Long, de Sabu (Japão, Alemanha, Hong Kong, China, Taiwan)
>> Return to Montauk, de Volker Schlöndorff (Alemanha, França, Irlanda)
>> Wilde Maus, de Josef Hader (Áustria)
4X MARCELO GOMES
Confira os longas do cineasta pernambucano
Cinema, aspirinas e urubus (2005)
Em 1942, alemão foge da guerra e vai viver no Nordeste brasileiro vendendo aspirinas. Nordestino tenta se associar a ele para escapar da seca.
Viajo porque preciso, volto porque te amo (com Karim Aïnouz, 2009)
Durante viagem de trabalho pelo Nordeste, geólogo faz a autópsia emocional de um grande amor em crise.
Era uma vez eu, Verônica (2012)
A jovem médica Verônica tenta encontrar a equação entre a rotina e as responsabilidades da vida adulta e seus sonhos de liberdade e prazer.
O homem das multidões (com Cao Guimarães, 2013)
Um condutor de metrô de BH e uma controladora de estação vivem presos às suas ideias de solidão, mesmo que mascarada por interações sociais.
Festival tem mais cinco brasileiros
Além de Joaquim na competição principal, a edição 2017 do Festival de Berlim terá quatro longas brasileiros nas seções paralelas Panorama e Generation. Filmado em Minas, Vazante, de Daniela Thomas, integra a Panorama, assim como Pendular, de Julia Murat.
A mostra Generation receberá Mulher do pai, de Cristiane Oliveira, e As duas Irenes, de Fabio Meira, que tem as atrizes Teuda Bara e Inês Peixoto, do Grupo Galpão, no elenco.
Vazante é a incursão de Daniela Thomas no tema do trabalho escravo dos negros africanos nas minas de ouro do interior das Gerais, em 1821, pela perspectiva de uma mulher. A diretora adotou o p&b como uma das soluções para ficar de acordo com o tema e o período.
O festival também exibirá o curta Estás vendo coisas (Barbara Wagner e Benjamin de Burca), sobre a cena brega do Recife.