Uma medida simples, mas que promete ajudar as mulheres vítimas de violência, sem que elas se exponham ao agressor. É esse o objetivo da Lei nº 11.518, publicada ontem no “Diário Oficial do Município” de Belo Horizonte. Com uma caneta ou até mesmo um batom, a vítima procura um estabelecimento e desenha um “x” na palma da mão. O funcionário entende que ela está em perigo, pede o nome e endereço da mulher e aciona a polícia. A iniciativa é mais uma ferramenta de enfrentamento à escalada de casos de violência contra a mulher. Dados da Secretaria de Estado de Justiça e Segurança Pública (Sejusp) mostram um aumento de 11,5% nos registros de violência doméstica e familiar contra a mulher em BH. Especialistas ouvidos pelo Estado de Minas veem com bons olhos a chegada da nova lei, mas também cobram ações mais efetivas do poder público.
A publicação inclui Belo Horizonte de forma oficial entre as localidades que adotaram o Programa de Cooperação e Código Sinal Vermelho, sancionado pelo governo federal em 2021. Em BH, a proposta surgiu por meio de um projeto de lei da vereadora Professora Marli Aparecida. O texto institui um protocolo, por meio de parcerias com estabelecimentos comerciais privados, no qual a mulher pode pedir socorro, seja ao dizer "sinal vermelho” ou apresentar, em sua mão, a marca "X", feita com qualquer material acessível, mas preferencialmente na cor vermelha. Quando a pessoa mostrar o “X”, quem atende, de forma reservada, usando os meios à sua disposição, registra o nome, o telefone e o endereço da suposta vítima, e aciona a Polícia Militar. O Poder Judiciário, Ministério Público, Defensoria Pública, os órgãos da Segurança Pública e as entidades privadas participantes devem trabalhar em sistema de cooperação e integração.
A iniciativa pode ser uma estratégia para que mulheres constantemente vigiadas pelos companheiros consigam pedir socorro em momentos de perigo. “Toda iniciativa que traz visibilidade para que a mulher possa ser escutada, ouvida, no momento em que ela está sofrendo, é importante. Tem muitos casos de companheiros que vigiam a mulher, com quem ela conversa, com quem ela troca mensagens. O ato de marcar esse X na mão é muito válido. Uma mulher pode estar em uma situação de violência em casa, vai à padaria e consegue pedir ajuda com esse sinal. Não vou precisar expor, um simples gesto já ajuda”, analisa Cláudia Mara, presidente do 14º Conselho Comunitário de Segurança Pública (Consep). Ela lembra que, na maioria das vezes, as mulheres que passam por violência doméstica e familiar sentem medo e, até mesmo, vergonha de procurar ajuda. “O medo inibe a mulher de tomar uma atitude, e ainda tem o constrangimento de chegar para um desconhecido e dizer que está sendo agredida. Acredito que essa nova lei é um grito de socorro”, afirma.
Mas especialistas destacam a necessidade de uma atuação efetiva do poder público para que a lei, de fato, funcione. "Não adianta chegar com um X para um funcionário e ele não saber do que se trata”, pontua Mara. Para o sociólogo especialista em segurança pública Luís Flávio Sapori, a iniciativa precisa de visibilidade e parcerias estratégicas. “Para além de que seja acionado o 190, temos que ter divulgação, conhecimento da população sobre a lei. É um passo favorável para que as pessoas se conscientizem que a denúncia pode acontecer de forma anônima. Em briga de marido e mulher, se mete a colher, sim”, disse. Questionada pela reportagem, a Prefeitura de Belo Horizonte (PBH) não detalhou como serão feitas as parcerias com as entidades privadas.
A nova legislação prevê também a promoção, por parte do Executivo, de campanhas educativas de prevenção da violência doméstica e familiar contra a mulher, voltadas ao público escolar e à sociedade em geral. As ações educativas serão coordenadas pelo Grupamento de Proteção à Mulher “Guardiã Maria da Penha”, da Guarda Municipal de BH, que já realiza projetos parecidos em estabelecimentos comerciais, estações de embarque e desembarque de passageiros e nas escolas da rede municipal. “Vale destacar que o grupamento já cumpre, desde a criação, parte das diretrizes estabelecidas pela nova lei municipal, ao realizar campanhas educativas de prevenção e combate aos crimes sexuais e à violência doméstica e familiar, além de divulgar a relação dos serviços disponíveis para acolhimento das vítimas”, destacou a PBH por meio de nota.
Escala de violência
As notificações de violência doméstica e familiar contra a mulher saltaram de 5.495, entre janeiro e abril do ano passado, para 6.131 em 2023. De 2021 para 2022, no entanto, os registros diminuíram, passando de 17.165 para 16.532 (confira os gráficos). Especialistas alertam, porém, que esse cenário não é motivo suficiente para se comemorar. A redução no número de ocorrências não necessariamente representa uma maior segurança para as mulheres, já que formalizar denúncias às autoridades policiais tem sido um obstáculo para as vítimas.
“Ainda é muito subnotificado. Esse discurso parece um disco arranhado, mas, lamentavelmente, essa é a realidade. Apesar da redução, os números não parecem refletir a realidade, mas sim a dificuldade de se realizar a denúncia”, aponta o sociólogo Luís Flávio Sapori. “A violência doméstica é um ciclo que começa com um relacionamento abusivo. Muitas vezes ali já está nascendo, infelizmente, um feminicídio”, completa Mara.
Um dos dificultadores para as mulheres registrarem a queixa, segundo especialistas, é a localização das unidades especializadas no atendimento à mulher. Belo Horizonte tem dois postos: a Casa da Mulher Mineira da Polícia Civil, no Centro, e a Delegacia de Plantão de Atendimento à Mulher, ambas na Região Centro-Sul de BH. Profissionais na linha de frente do combate à violência contra a mulher cobram a descentralização dos equipamentos de proteção.
“Uma mulher que está em Venda Nova e sofre uma violência, uma agressão, tem que se deslocar. Isso dificulta demais, porque se é uma mulher que tem uma vulnerabilidade social, está dependente financeiramente do companheiro, ela já não consegue ir até a delegacia. Faltam equipamentos de escuta. Tem que ter uma delegacia da mulher, no mínimo, uma central de atendimento, em cada regional”, reclama a presidente do (Consep). A demora no atendimento também é outro fator de desânimo. “Muitas vezes, a mulher passa mais de 24 horas para ser atendida”, alerta Mara.
A mulher em situação de violência de qualquer cidade de Minas Gerais pode procurar uma delegacia para fazer a denúncia. Também é possível fazer um registro por meio da delegacia virtual, no aplicativo “MG Mulher”. Ao registrar a ocorrência, a mulher pode pedir o requerimento de medida protetiva. Mais de 90% das mulheres vítimas de feminicídio não tinham medidas protetivas ou sequer fizeram registro de ocorrência da violência sofrida, segundo a Polícia Civil.
Em Belo Horizonte, há também atendimento especializado para mulheres acima de 18 anos vítimas de violência doméstica e familiar – psicológica, física, sexual, patrimonial ou moral – com base no gênero, de acordo com a Lei Maria da Penha.
Onde procurar ajuda
» Centros de Referência da Mulher
Espaços de acolhimento/atendimento psicológico e social, orientação e encaminhamento jurídico à mulher em situação de violência. Devem proporcionar o atendimento e o acolhimento necessários à superação da situação de violência, contribuindo para o fortalecimento da mulher e o resgate de sua cidadania.
» Casas-Abrigo
Locais seguros que oferecem moradia protegida e atendimento integral a mulheres em risco de morte iminente em razão da violência doméstica. É um serviço de caráter sigiloso e temporário, no qual as usuárias permanecem por um período determinado, durante o qual deverão reunir condições necessárias para retomar o curso de suas vidas.
» Companhia de Prevenção à Violência
Tem como objetivo acolher e dar segurança à mulher vítima de violência doméstica. Trata-se do corpo militar que atuava na Patrulha de Prevenção à Violência Doméstica (PPVD), criada em 2010, treinada para dar a resposta adequada à vítima de violência doméstica e atua em conjunto com outros órgãos do governo de Minas.
» Delegacias Especializadas de Atendimento à Mulher (DEAMs)
Unidades especializadas da Polícia Civil para atendimento às mulheres em situação de violência. As atividades das DEAMs têm caráter preventivo e repressivo, devendo realizar ações de prevenção, apuração, investigação e enquadramento legal, as quais devem ser pautadas no respeito pelos direitos humanos e pelos princípios do Estado Democrático de Direito. Com a promulgação da Lei Maria da Penha, as DEAMs passam a desempenhar novas funções que incluem, por exemplo, a expedição de medidas protetivas de urgência ao juiz no prazo máximo de 48 horas.
» Núcleos de Atendimento à Mulher
Espaços de atendimento à mulher em situação de violência (que em geral, contam com equipe própria) nas delegacias comuns.
» Defensorias da Mulher
Têm a finalidade de dar assistência jurídica, orientar e encaminhar as mulheres em situação de violência. É um órgão do Estado responsável pela defesa das cidadãs que não possuem condições econômicas de ter advogado contratado por seus próprios meios. Possibilitam a ampliação do acesso à Justiça, bem como, a garantia às mulheres de orientação jurídica adequada e de acompanhamento de seus processos.
» Promotorias de Justiça Especializada na Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher
A Promotoria Especializada do Ministério Público promove a ação penal nos crimes de violência contra as mulheres. Atua também na fiscalização dos serviços da rede de atendimento.