COLUNISTA DA FOLHA
As grandes tradições religiosas sempre contam com exercícios e anotações espirituais.
A espiritualidade, como bem diz a apresentação deste volume que se constitui nas anotações em duas agendas do papa João Paulo 2º (1920-2005), recentemente canonizado, significa um esforço do religioso em refletir sobre sua relação com Deus, o mundo, a vida e seus semelhantes.
João Paulo 2º queria que essas anotações fossem queimadas após sua morte, mas, graças ao arcebispo de Cracóvia dom Stanislaw Dziwisz, isso não aconteceu.
Agora reunidos no livro “João Paulo 2º – Estou nas Mãos de Deus”, esses textos nos permitem saber como pensava, em seu dia a dia, este homem que tanto marcou a história da segunda metade do século 20.
A marca da grande espiritualidade está neste percurso que é buscar ver como Deus se manifesta na vida, percurso este que encontra em obras como “As Confissões”, de Santo Agostinho, uma referência essencial.
Esta busca é comumente pautada por uma tradição de textos e reflexões contidas em certos conceitos teóricos e práticos.
No caso de João Paulo 2º, sua pertença a um viés “mariológico” é claro: o recente santo vê em Maria um personagem central no modo como se deve viver e aceitar as contingências da vida.
Alegria e sofrimento devem ser acolhidos como a vontade de Deus. Toda agonia vivida “pelos olhos de Maria” se torna suportável na medida em que é uma agonia acompanhada pela misericórdia de Deus.
Este é o mistério da fé, entendido deste modo, inclusive, pela recente encíclica do atual papa Francisco: ter fé é a certeza de nunca estar só.
GRANDES TEMAS DA VIDA
A espiritualidade nada tem de um pensamento descolado da realidade ou do cotidiano, pelo contrário, sua natureza é associar os “grandes temas da vida” a fatos cotidianos, e, por último, vê-los pela luz da tradição religiosa que ilumina a vida do autor.
Vejamos alguns exemplos do próprio autor. No dia 8 de julho de 1962, o ainda Karol Wojtyla, mais tarde denominado papa João Paulo 2º (foi eleito papa em 1978), escreve em suas anotações quatro itens: 1) morte, 2) poder, 3) criatividade, 4) pessoas.
Na anotação seguinte, no dia 2 setembro, escreve Wojtyla: “Quando qualquer assunto ‘meu’ se transforma, assim, em propriedade de Maria, é possível enfrentá-lo, mesmo que isso implique um risco”.
Sua última anotação, feita no dia 15 de março de 2003, é: “Jonas, ou o medo de anunciar o amor de Deus”. O grande homem de fé aqui sente o peso de ter a “mão de Deus sobre sua cabeça”.
Tema clássico na literatura dos “eleitos”, João Paulo 2º aqui faz eco ao profeta Jonas, um daqueles heróis bíblicos que sofrem pelo peso de ter que ser figura de Deus no mundo.