LUCAS FERRAZ | Folha de São Paulo
ENVIADO ESPECIAL A AUSTIN (EUA)
O ex-presidente João Belchior Marques Goulart via sua queda no golpe de Estado de 1964 como resultado de uma campanha de “envenenamento” da opinião pública contra o seu governo. “Meu maior crime foi tentar combater a ignorância”, dizia ele.
Para Jango, criou-se uma confusão entre justiça social (que ele disse ter buscado) e comunismo (que não compartilhava), e que após o assassinato do presidente americano John Kennedy, em 1963, os EUA começaram a derrubar governos constitucionais na América Latina, entre os quais o dele.
Três anos e sete meses depois de deixar o país, era assim que Jango via o painel da crise que o depôs.
A Folha encontrou na Universidade do Texas uma entrevista inédita do ex-presidente feita pelo historiador americano John W. Foster Dulles (1913-2008). O depoimento, realizado em 15 de novembro de 1967 em Montevidéu, permaneceu desconhecido desde então.
Foster Dulles não a utilizou nos livros que escreveu sobre o Brasil ou personagens brasileiros, como Castello Branco e Carlos Lacerda. O historiador Jorge Ferreira, autor de uma biografia de Jango, disse desconhecer a entrevista. O mesmo foi dito por João Vicente Goulart, filho e responsável pelo instituto que leva o nome do ex-presidente.
Filho e sobrinho de dois dos americanos mais influentes do século 20, que ajudaram a moldar o poder dos EUA, o historiador Foster Dulles contou com a influência familiar para se encontrar no Brasil e no exterior com os principais personagens do golpe de 1964. A biblioteca Nettie Lee Benson, da Universidade do Texas, onde o americano lecionou, guarda as centenas de entrevistas realizadas por ele.
No encontro com João Goulart, segundo o relato de Dulles, o ex-presidente comentou a influência dos EUA e o antiamericanismo no Brasil.
“Não há no Brasil um sentimento contra o povo dos EUA”, disse. “O Brasil quer que a América Latina tenha independência em suas discussões, o país quer que os brasileiros, e isso inclui as classes populares, comandem o próprio destino. O país às vezes sente que há um excesso de interferência dos EUA, que falam muito em democracia, mas deveriam permitir a democracia.”
Jango creditou sua queda e a de governos democráticos na região, como Argentina e Bolívia, à influência de Lyndon Johnson, presidente que assumiu a Casa Branca após o assassinato de Kennedy.
A visão do ex-presidente não era correta, mas ele não viveria para ver as revelações sobre a participação americana no golpe: Johnson apenas seguiu o script planejado pelo antecessor, que teve relação amistosa com o brasileiro enquanto eram presidentes.
Sobre o envenenamento da opinião pública, Jango relembrou a feroz posição da imprensa contra o seu governo. “As pessoas na América Latina não são inclinadas ao comunismo. Justiça social não é algo marxista ou comunista”, ressaltou.
O ex-presidente alegou ter feito ” grandes concessões a grupos políticos” para promover as reformas de base, uma de suas bandeiras, sem sucesso. À época, seu governo não conseguiu aprovar as reformas, como a agrária, num Congresso de maioria conservadora. “Eram reformas a favor da independência, do desenvolvimento, do bem-estar e da justiça social.”
Como reconheceu, a lei que regulamentou a remessa de lucros de empresas estrangeiras “causou grande perturbação ao governo”. “As companhias estrangeiras estavam preocupadas. Quando o capital estrangeiro entra e sai, não há vantagem para o Brasil. Ao contrário, esse capital prejudica. Todo capital estrangeiro deveria ser bem-vindo se colaborasse com o desenvolvimento do país.”
Conforme registrado por Foster Dulles, Jango não queria que as declarações fossem atribuídas a ele, tratando-se apenas de “sentimentos pessoais”, para ajudá-lo a compreender o Brasil.
O presidente deposto lembrou que o golpe ceifou a oportunidade de o Brasil dar “um grande impulso para o processo democrático” na América Latina. E ainda citou, ao que parece se referindo ao clima político de sua queda, que “o excesso de liberdade é ruim, mas o excesso de oposição também é ruim”.