Quatro mães que tiveram filhos na Santa Casa de Ouro Preto, na região Central de Minas Gerais, foram à Delegacia Especializada de Atendimento à Mulher nesta terça-feira (7/6) registrar um Boletim de Ocorrência relatando terem sofrido violência obstétrica durante o parto. O Conselho Municipal dos Direitos das Mulheres de Ouro Preto afirma que é a primeira vez que esse tipo de violência é denunciado na cidade histórica, e a ação das mães pode abrir portas para mais denúncias.
Uma das mães é Viviane de Paula, de 29 anos, que relata a vinda da pequena Emily com muita dor e descaso do médico obstetra. Segundo a mãe, o parto foi realizado em novembro de 2022, mas que teve ciência de que o que passou tem o nome de ‘violência obstétrica’ após outra mãe relatar fato semelhante ao que sofreu.
“Na época não entendia, achava que era um parto estranho, mas depois de conversas vi que era violência obstétrica. Não sabia que o que sofri tinha um nome e, ao conhecer uma amiga que também sofreu violência com o mesmo médico, ela me apresentou a uma doula que me explicou”, conta.
Outra mãe, de 22 anos, que deseja não se identificar afirma que a gestação foi toda planejada. Ela conta que durante a realização das consultas do pré-natal foi elaborado um ‘plano de parto’, um documento com validade legal, recomendado e reconhecido pelo Ministério da Saúde.
“Estudei bastante como seria um parto, inclusive nas minhas consultas de pré-natal, sempre quis montar meu plano de parto. O SUS me deu até um modelo que usam durante o parto e adaptei para meu próprio modelo, coloquei meu anseios e entendi que poderia haver mudanças devido às circunstâncias, mas meu parto não teve nenhuma complicação e creio que daria para segui-lo, mas o obstetra não respeitou o meu planejamento."
O que é violência obstétrica
A doula Jaqueline Lourenço de Souza, que faz gestão compartilhada com outras mulheres no Coletivo de Doulas da Região dos Inconfidentes, explica que a violência obstétrica pode ser definida como atos praticados por profissionais de saúde, servidores públicos, técnicos administrativos, profissionais de instituições públicas ou privadas e civis, que violam a saúde sexual e reprodutiva da mulher. A violência obstétrica pode ser definida em três principais categorias: violência física, psicológica e sexual.
“A violência obstétrica é uma violação no direito constitucional à saúde e à garantia da dignidade, considerados direitos humanos fundamentais. A violência ainda resulta em tipos penais de homicídio, em casos mais graves, e lesões corporais."
A doula aponta como exemplo de violência obstétrica a recusa da entrada de um acompanhante durante as consultas pré-natal e atendimento ao parto e abortamento, a recusa da analgesia para alívio da dor do parto, execução de manobras e intervenções invasivas sem o consentimento da mulher, comentários constrangedores, pressão psicológica e ameaça.
“As denúncias chegam até nós por meio das redes sociais, e, por vezes, presenciamos situações de violência durante o atendimento profissional de acompanhamento do parto, como doulas, mas, infelizmente, a dificuldade que encontramos é que como profissionais, não podemos intervir em uma situação de violência."
Relatos de violência
O 10 de abril era para ser o dia de recordações felizes para a mãe da pequena Helena, mas a data se tornou um momento de tristeza e choro. A mãe conta que o obstetra se recusou em colocá-la em uma posição confortável durante o trabalho de parto e que não “iria fazer as vontades dela”.
A situação se agravou quando o obstetra disse que iria fazer a episiotomia que é um corte cirúrgico efetuado no períneo, algo que a gestante recusou e mesmo assim foi feito sem anestesia.
“Ele disse que, nos 40 anos de profissão, não existe parto sem esse corte, e ele nunca fez parto sem a episiotomia e, caso eu não quisesse fazer, ele iria embora e abandonar o parto. A anestesia que ele disse ter dado não pegou muito bem e eu senti muita dor, ele disse novamente que eu não estava sentindo dor, em sentido de ironia, e eu chorando de dor."
A mãe também relata que o médico a ameaçou dizendo que era para que tomasse cuidado para evitar uma outra gravidez porque partos são daquela forma. “Ele disse para eu tomar cuidado, se não quisesse aquilo de novo e precisar ir ao hospital novamente."
Viviane de Paula também foi atendida pelo mesmo médico obstetra da Santa Casa de Ouro Preto. Ela relata que a filha veio ao mundo após 12 horas trabalho de parto, sem anestesia local e nem espinhal.
“Ele espremia minha barriga para forçar o nascimento da minha filha, ele me disse durante o trabalho departo que eu era nova e podia ser um parto normal, sem cesária, sem anestesia que eu ia aguentar, ele disse que não era para me importar que no ano seguinte estaria lá parindo de novo”.
A mãe também relatou que, devido à demora do parto, a pequena Emily ficou internada durante uma semana na Santa Casa. “O parto foi normal mas o que sofri não foi, ele falava que era para eu calar a boca senão ficaria mais duas horas costurando os meus pontos."
Denúncia
A presidente do Conselho Municipal dos Direitos das Mulheres de Ouro Preto, Débora Queiroz, acompanhou as quatro mães na denúncia contra o médico obstetra na Delegacia Especializada das Mulheres. Segundo a presidente, é muito importante que as mulheres denunciem para que o órgão tenha a dimensão do problema na cidade.
“Com as denúncias podemos atuar na pressão da instrumentalização de políticas públicas e mecanismos de fiscalização. Também é importante que as mães procurem o Conselho Municipal que tem como objetivo de fiscalizar o que anda acontecendo na cidade”.
A presidente do Conselho orienta que mesmo que a violência obstétrica não estar prevista em lei, reconhecida judicialmente como ‘violência obstétrica’, ela deve ser denunciada na ouvidoria do hospital, no Disk saúde 136 e no 180. O Boletim de Ocorrência deve ser feito, para que consigamos gerar dados e tomar proporção deste acontecimento no município e no país.
Débora também aponta que, as doulas precisam estar inseridas dentro dos partos desde a atenção primária, no pré- natal até o momento do parto.
“É importante que as doulas possam participar de toda a gestação, para isso precisa de ter um projeto de lei que garanta a elas o direito de participar de todo o momento gestacional”.
O que a Santa Casa diz
A Santa Casa de Ouro Preto enviou uma nota ao Estado de Minas. Confira:
“A Santa Casa prima pelas boas práticas de assistência em saúde. No que concerne ao atendimento obstétrico, a Instituição conta com a certificação de Hospital Amigo da Criança, fato que demonstra o comprometimento com a assistência humanizada. Os médicos atuantes na equipe de ginecologia e obstetrícia são, constantemente, orientados e treinados no sentido de prestarem atendimento humanizado, seguindo sempre os desejos expressados pelas parturientes dentro das condutas técnicas e éticas preconizadas.
A Santa Casa de Ouro Preto tomou conhecimento sobre essas denúncias na presente semana e, desse modo, houve a ciência da Diretoria Técnica da Instituição. O profissional médico citado pelo jornal, dentro do princípio de ampla defesa, será ouvido para que sua versão dos fatos seja conhecida. De posse de todas as informações pertinentes, não se descarta a abertura de sindicância interna para avaliação do caso, dentro dos preceitos estabelecidos pelo Conselho Regional e Federal de Medicina.
Todos os profissionais de enfermagem (técnicos e enfermeiros) atuantes na Maternidade passaram por qualificação e titulação ofertada por doulas atuantes na Maternidade Sofia Feldman, referência em ginecologia e obstetrícia no Estado de Minas Gerais. Esse treinamento teve como objetivo humanizar ainda mais os atendimentos trazendo mais conforto físico, emocional, afetivo e psicológico à mulher podendo participar de modo pleno no acompanhamento de partos."