Com medo de ser presa, Ludmila*, 26, tomou um remédio abortivo e ficou duas semanas sangrando em silêncio, porque, se fosse ao hospital de imediato, poderiam entregá-la pelo “crime”. Isso foi há quatro anos, e quase ninguém sabe que ela interrompeu uma gestação. Hoje, não se arrepende do que fez porque não queria ter um filho fruto de um relacionamento instável e abusivo. Mas ainda carrega o peso de ter feito algo ilegal. “É um desespero muito grande, medo de não dar certo. Depois, vi o tanto de mulher que passa esse aperto”, diz.
Além do trauma e do risco que sofrem, muitas mulheres acabam sendo processadas pelo crime, geralmente denunciadas por hospitais, vizinhos ou familiares que avisam a polícia. O Tribunal de Justiça de Minas Gerais possui hoje cerca de 400 processos relativos a aborto. Em 209 ações, são mulheres que respondem criminalmente por terem provocado ou consentido a interrupção; outros 146 casos são relativos a médicos, enfermeiros ou outros que fizeram o procedimento.
O aborto é crime no Brasil, previsto no artigo 124 do Código Penal, com pena de um a três anos para a gestante que o provoca e de um a quatro anos para quem realiza o procedimento, conforme o artigo 126. Só quando há risco de morte para a mulher, quando o feto é anencéfalo e em casos de estupro a prática é permitida no país – mas já há discussões no Congresso Nacional, como a Proposta de Emenda Complementar (PEC) 181, que podem proibir todos eles, o que geraria mais processos na Justiça.
O número de processos por ano cresceu muito desde 2011, quando havia 205 ações no TJMG. Um aumento de quase 100% na quantidade de casos judiciais em seis anos. Existem processos em andamento na Justiça há 15 anos. Somente na capital mineira, o ano passado encerrou com 59 ações em andamento, sendo 28 contra gestantes. “Nem nós, profissionais da saúde, temos o direito de julgar essa mulher pelo que ela quer fazer. Nosso objetivo é prestar um atendimento humanizado”, afirma a ginecologista Sara Paiva, coordenadora do Serviço de Atendimento a Vítimas de Violência Sexual do Hospital das Clínicas.
Sozinha. A rede de atenção à vítima de violência doméstica que existe na cidade não acolhe a mulher que deseja abortar pelo fato de isso ser uma prática ilegal – as instituições estariam apoiando um crime. As mulheres processadas são encaminhadas a defensores, promotores e juízes do Tribunal do Júri por se tratar de um crime doloso contra a vida.
O juiz presidente do 1º Tribunal do Júri de Belo Horizonte, Walter Zwicker Esbaille Junior, explica que o andamento desse processo ocorre como em todo homicídio. “A autoridade policial realiza esforços para apurar a autoria e a existência material do crime. Para tanto, há oitiva de testemunhas, realização de perícias, apreensão de objetos utilizados no crime”, descreve o magistrado, acrescentando que, quando o caso vai a julgamento, os jurados podem analisar o delito baseados em questões religiosas, piedade, repulsa etc.
O defensor do 2ª Tribunal do Júri Aender Braga informa não saber de gestante que tenha sido encaminhada ao julgamento final, só de médicos que fizeram o aborto e pegaram penas de em torno de dois anos de prisão. As mulheres, se não têm antecedentes criminais, podem receber penas alternativas. “Se já tiver cometido crime, ela chega ao tribunal”, diz.
Saiba mais
Abortos. Segundo o Ministério da Saúde, oficialmente, em Minas Gerais, foram realizados 15 abortos legais no ano passado, mas os hospitais da capital mineira computaram cerca de 40. Por outro lado, as unidades de saúde do Estado fizeram 16.733 procedimentos pós-aborto (curetagem) em 2016 – o que dá dois casos por hora.
Perfil. O Instituto Anis estima que, entre as que abortam ilegalmente, cerca de 500 mil por ano são mulheres de idade média, têm religião e são brancas ou negras. Mas, para Marlise Matos, do Núcleo de Estudos e Pesquisa sobre a Mulher da UFMG, acaba sendo mais difícil para as pobres: “Quem pode fazer o abortamento seguro, com recursos e ajuda da família, vai fazer mesmo de forma ilegal. E as que não têm condição correm risco de ser identificadas e processadas”.
Ajuda. Além do Hospital das Clínicas, em BH, a Casa de Referência da Mulher Tina Martins oferece apoio na rua Paraíba, 641, no bairro Funcionários.
Perfil é de mulher jovem que não tem antecedente criminal
A Defensoria Pública do Rio de Janeiro divulgou recentemente um levantamento do perfil de 42 mulheres processadas por aborto de 2005 a 2017, e a maioria é negra, tem entre 22 e 25 anos, já é mãe e não tem antecedentes criminais. Em Belo Horizonte, o defensor Aender Braga acredita que as situações são semelhantes. Mas, “pude perceber que elas (as mineiras) tinham alguma condição financeira para pagar uma clínica clandestina”, diz ele.
O delegado Matheus Cobucci Salles, da Delegacia de Homicídios da capital mineira, acrescenta que “são meninas mais novas, solteiras, que o parceiro não ajudou ou era casado”. Ele e o defensor, que atuam diretamente nesses processos de aborto, avaliam que criminalizar não é a melhor forma de combater a prática. “Essa gravidez forçada pelo Estado não vai resolver o problema. A mulher que quer abortar vai fazer isso, mesmo sendo crime. Salvaríamos muito mais vidas se essa mulher tivesse condição de buscar ajuda no SUS, não punindo”, defende Braga. Para Salles, devem entrar na esfera criminal apenas aqueles que realizam o procedimento, “para não fomentar que as pessoas utilizem essa prática para a obtenção de lucro”.
O levantamento da defensoria carioca também apontou que as mulheres tiveram que enfrentar agressões físicas e psicológicas por causa do aborto, inclusive no serviço de saúde. Em pouco mais de 30% dos casos, a investigação foi fruto da denúncia de hospitais ou de apelo de familiares que não sabiam como socorrê-las.