Com a pele marcada por hematomas, Julia*, de 9 anos, foi encaminhada para um abrigo porque o pai não acreditava que a madrasta a espancava, e não havia ninguém em casa nem familiares próximos para protegê-la. Bruna*, de 6, era agredida pela mãe, que andava nervosa e não tinha paciência para ensinar o dever de casa. Os pais de João*, de 1 ano, fugiram e o deixaram com o vizinho. Essas histórias, que chegam todos os dias aos conselhos tutelares de Belo Horizonte, são retrato de uma realidade do país, onde a negligência, o abandono e a agressão física são as principais formas de violência contra crianças, seguidas da violência sexual. Os casos ocorrem, sobretudo, dentro de casa e são praticados, na maioria das vezes, pelos pais.
As informações estão em um estudo realizado por pesquisadores da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e de outras instituições brasileiras, com base nos dados de 2014 da Vigilância de Violências e Acidentes, inquérito do Ministério da Saúde que avalia os atendimentos dos serviços de urgência e emergência dos hospitais de referência do país. Em Belo Horizonte, a amostra incluiu os hospitais João XXIII, Odilon Behrens e Risoleta Neves. Quando se considera todas as unidades de saúde da capital, a negligência passa a ser a segunda forma de violência mais frequente, com 306 casos entre crianças de até 9 anos, atrás da violência sexual, com 456 ocorrências, conforme dados de 2015 a março de 2018 da Secretaria Municipal de Saúde.
“A negligência é qualquer desatenção em relação ao cuidado que deve ser dispensado às crianças. Pode ser uma demora na troca de fralda, a falta de vacinas, a pouca oferta de alimentos e de estímulos e a ausência de proteção quanto a escadas ou a água fervendo no fogo. São ocorrências preveníveis”, explicou a professora de saúde coletiva da escola de enfermagem da UFMG Deborah Carvalho Malta, uma das autoras do estudo.
Veja AQUI, alguns números da violência contras crianças e adolescentes.
Segundo ela, a negligência é mais recorrente quanto menor e mais vulnerável é a criança, e chega a 80% dos casos entre as vítimas com até 1 ano. “Na maioria das vezes, os autores são pai, mãe, padrasto e madrasta. As pessoas que deveriam proteger essas crianças acabam perpetrando a violência”, disse Deborah.
No caso de crianças de 6 a 9 anos, a agressão física, que inclui desde palmadas até espancamentos, toma o posto de principal forma de violência e ocorre em cerca de 80% dos casos. “Nessa faixa etária, há ocorrências nas escolas, onde existe outro tipo de agressor. Às vezes, é um desconhecido, mas a maioria são colegas”, explicou a professora.
* Nomes fictícios
Bullying e ocorrências ligadas a drogas afetam mais adolescentes
Diferentemente do que ocorre com as crianças, a violência contra os adolescentes acontece, principalmente, na rua. A residência é o segundo local com maior número de casos. Os agressores dos adolescentes de 10 a 15 anos são, na maioria das vezes, os amigos – segundo a professora da UFMG, Deborah Malta, é o caso típico do bullying.
Já os jovens de 15 a 19 anos são vítimas, geralmente, de desconhecidos. “É a típica violência urbana. A gente sabe que grande parte das ocorrências tem a ver com drogas, disputas e brigas”, afirma Deborah.
Ela ressalta que a agressão física é a forma mais frequente de violência e se dá, sobretudo, por meio de força corporal e espancamento. “Isso gera lesões mais intensas, como luxações, cortes e fraturas, e 15% dos casos resultam em internações”, afirmou.
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Perfil. Enquanto a violência física atinge mais os meninos de 6 a 9 anos, a sexual faz mais vítimas do sexo feminino. De acordo com o estudo, 90% das ocorrências são de leve ou média gravidade, e 10% resultam em internação. No entanto, a maioria das vítimas pode ter traumas psicológicos e o desenvolvimento prejudicado.
Consequência. Além disso, crianças violentadas têm mais chance de se tornarem agressores no futuro. “Ela passa a considerar esse tipo de atitude normal”, analisa Deborah Malta, professora da escola de enfermagem da UFMG. “É também uma forma de perpetuar o machismo. Os meninos podem acreditar que têm direito de fazer isso com filhos e esposas”, afirmou a especialista.
A cada hora polícia registra duas vítimas
A cada hora, a polícia foi acionada para atender duas crianças ou adolescentes vítimas de lesão corporal em Minas Gerais no ano passado, quando houve um total de 17.898 casos até novembro. Em 2016, foram 20.624 registros. Segundo a delegada da Divisão de Orientação e Proteção da Criança e do Adolescente, Isabella Franco, o Conselho Tutelar é comunicado sobre todas as denúncias.
Em alguns casos, quando há riscos para a vítima, a corporação busca medidas protetivas, como a retirada do agressor de casa e a proibição do contato. “A maior parte das violações contra crianças ocorre no âmbito familiar. Os agressores geralmente são os genitores, algum parente próximo ou um conhecido”, afirmou a delegada.
Ela ressaltou a importância da denúncia dos casos de violência pela família e por outras instituições, como a escola. Devido à vulnerabilidade das crianças, sobretudo as mais novas, a maioria não consegue reportar, sozinha, as violações. “Acontece de a criança contar na escola”, disse.
Para a coordenadora especial da Política Pró-criança e Adolescente da Secretaria de Estado de Direitos Humanos, Participação e Cidadania, Célia Carvalho Nahas, é preciso haver uma proteção da sociedade para as crianças.
“Às vezes, imperceptivelmente, nós reproduzimos a lógica de que a família faz do jeito que quiser com as crianças, mas temos que entender que todo mundo tem certa responsabilidade de orientar os pais na educação e sinalizar quando eles estão excedendo o limite ou quando deixam a desejar”, pontuou.