A BBC Brasil publicou uma reportagem especial, sobre a confirmação do ódio de usuários que utilizam as redes sociais.
Nas redes sociais, é possível expressar o seu ódio, dar a ele uma dimensão pública, receber aplausos de seus amigos e seguidores e se sentir, de alguma forma, validado.
Além disso, a linha entre uma ameaça virtual e uma ação criminosa é tênue, como ocorreu no caso da chacina ocorrida em Campinas (SP) no começo do ano, quando um homem matou a ex-mulher, o filho e outras dez pessoas durante uma festa de Ano Novo.
Essa é avaliação que o psicanalista Contardo Calligaris, doutor em psicologia clínica e autor de diversos livros, faz sobre a disseminação dos discursos de ódio nas redes sociais, que para ele deveria ser “perseguida”. “Deveríamos ter limites claros ao que é o campo da liberdade de expressão, que é intocável, e o momento em que aquilo se torna uma ameaça.”
Em entrevista à BBC Brasil, ele ressalta que as redes também trazem efeitos muitos positivos, refuta discursos de que o mundo está mais violento e fala de sua esperança de que os brasileiros se tornem “cidadãos melhores”. Confira os principais trechos:
BBC Brasil – Temos observado casos de violência brutal – chacinas como a de Campinas, a morte de um ambulante espancado em uma estação de metrô, atentados, matanças. Vivemos uma época de mais intolerância ou apenas sabemos mais sobre ela?
Contardo Calligaris – Eu tendo sempre a diminuir os gritos de horror, que são plenamente justificados, mas tendo a diminuí-los porque a sensação de que estamos em um mundo mais violento no médio e longo prazo é sempre falsa. Estamos em um mundo infinitamente menos violento do que era dois séculos atrás, por exemplo – essa é a progressão. Mas claro, é um gráfico que sobe e desce.
Nos casos recentes, um é diferente do outro. Uma coisa é o espancamento de um ambulante que tentou ajudar as travestis, de populações particularmente expostas à violência coletiva – aqui realmente se trata de um crime de ódio, de ódio à diferença.
Quase sempre são crimes inspirados pelo horror e medo de poder se identificar com a vítima – a sensação de que “eu mato o morador de rua ou a travesti que eu poderia vir a ser e de tal forma eu nunca virei a ser essa mesma pessoa”. É a base fundamental de muitos comportamentos racistas, de extermínio de diferentes.
Esse é um tipo de mecanismo de violência, mas outro é o caso da boate em Istambul, por exemplo, que é o desejo de “destruir o local onde os “ocidentais se reúnem para suas festas de infiéis porque não quero ser tentado por isso e mato a minha própria tentação de cair na gandaia”.
E outro tipo ainda é o episódio de Campinas, que é o que me dá mais pena – aqui tem uma coisa que a imprensa deveria sublinhar muito para que seja ouvida, que é uma história absolutamente anunciada.
Houve, ao longo de cinco anos, vários boletins de ocorrência, a mulher não consentiu com as medidas restritivas que poderiam fazer a diferença. E aí você vai me dizer, “mas a polícia e a Justiça não fariam nada, só iriam à casa do suspeito”, mas isso sim já faria a diferença.
Alguém deveria ter orientado a mulher sobre a possibilidade disso acontecer, mesmo sendo o pai de seu filho. As estatísticas dizem que quando você tem quatro ou cinco boletins de ocorrência depois da separação, as chances são grandes de você ter episódios de violência.
BBC Brasil – A descrença que a gente vê nesse caso – de que o homem não seria capaz de fazer algo concretamente – também observamos nos casos dos comentários raivosos das redes sociais. Especialmente depois desse caso, mas em tantos outros, em muitos dos argumentos que a gente já leu na internet, muito desse discurso do ódio está explícito. Será que isso é um alerta de que esse discurso estaria passando para o ato e se concretizando na vida real?
Calligaris – Nas redes sociais, é possível expressar o seu ódio, dar a ele uma dimensão pública, receber aplausos pelos seus amigos e seguidores, e se sentir de alguma coisa validado. Ou seja, as redes sociais produzem uma espécie de validação do seu ódio que era muito mais difícil antes de elas existirem e se tornarem tão importantes na vida das pessoas.
Isso não tem remédio porque não podemos voltar atrás, e essa é certamente a parte menos interessante das redes sociais, que em contrapartida têm efeitos sociais muito positivos.
É uma coisa um pouco ridícula ouvir isso de um psicanalista, mas eu acho que o discurso de ódio nas redes sociais é algo que deveria ser perseguido, deveríamos ter limites claros ao que é o campo da liberdade de expressão, que é intocável, e o momento em que aquilo se torna uma ameaça e deveria receber imediatamente a atenção da polícia e do Judiciário.
Existe uma linha tênue de passagem entre a ameaça na rede social, a confirmação que ela recebe do discurso de quatro, cinco, ou mil malucos nos comentários – pessoas que vão ter respondido, no caso de Campinas, por exemplo, “vai lá e mata mesmo aquela ‘vadia'” – e a possibilidade de ação criminosa.
Ele é um louco, no sentido geral e num sentido clínico certamente poderíamos especificar melhor. De toda forma, todos nós somos capazes de pensar a forma como essa panela de pressão foi se construindo.
BBC Brasil – Assim como as redes sociais têm essa ambiguidade – um lado positivo e outro negativo – o nosso mundo e nossa sociedade parece caminhar um pouco da mesma forma, dando dois passos para frente e um para trás. Por exemplo, na questão de gêneros, temos uma fluidez maior, mas muitos ataques contra gays e trans. Como fica o indivíduo nesse período em que parece que temos duas realidades: uma abertura maior com relação a alguns assuntos e um preconceito rigoroso sobre eles?
Calligaris – As redes sociais proporcionaram, por um lado, coisas que eram impensáveis anos atrás. Por exemplo, tem um ódio coletivo que se manifesta contra a comunidade trans, alimentado por figuras sinistras que comandam até igrejas, e isso é alimentado, apesar de poder ser caracterizado como um crime de incitação ao ódio.
Mas, por outro lado, alguém que não se reconhecia no seu corpo, uma trans que morava no interior do Mato Grosso e achava que era um monstro, único do tipo e destinada a uma vida escondida, de repente descobre que tem pessoas como ela pelo mundo afora, e grupos, e pessoas dispostas a escutar, a dar conselhos. Isso é o outro efeito positivo das redes.
Agora é verdade que fundamentalmente as redes sociais são construídas no modelo da sociedade contemporânea, ou seja, você vale o apreço que você produz. Ou no caso, o número de “likes” que suas postagens conseguem receber.
Isso aconteceria mesmo que as redes sociais não existissem. Ou seja, na sociedade contemporânea, você não vale os seus diplomas ou nem mesmo o que é a sua história – o que importa é quem e quantos gostam de você. Assim é o funcionamento da sociedade contemporânea, gostemos dele ou não.
Agora, o problema é que, quando você vive, se alimenta do apreço dos outros, é muito fácil se enredar em formações de grupo absolutamente espantosas.
Então o discurso de ódio, por exemplo, se alimenta porque é uma coisa “maravilhosa”: você constitui, pelas redes sociais, um imenso grupo de pessoas que pensam absolutamente a mesma coisa que você – o que é trágico porque frequentar e trocar mensagens com quem diz “é isso mesmo, meu irmão” é de um tédio mortal.
BBC Brasil – E isso tem a ver com as bolhas informacionais e com algoritmos que “pensam por nós” e reforçam esse comportamento…
Calligaris – Sim… eu acho que deveríamos ler aquilo com o qual não concordamos, não só o que concordamos. Eu, como colunista, penso isso. Para que ler algo que você sabe que vai concordar?
BBC Brasil – Falando sobre esse reforço de ideias ainda e sobre avanços e atrasos, há o que parece ser um incômodo sobre a conquista de direitos dos outros – e aqui falo especificamente sobre a mulher. A psicanálise explica por que essa conquista incomoda tanto alguns grupos da sociedade?
Calligaris – O que mais me surpreende é, por um lado, a tremenda insegurança de quem se ofende com os direitos de uma maioria oprimida.
Essa inquietação tem uma força ideológica muito mais ao redor de pessoas que sobrevivem ou acham que sobrevivem graças a precárias posições de vantagem.
Tem um monte de homens um pouco perdidos porque ficou cada vez menos claro o que é esperado deles. Também não sabemos mais como defini-lo – ele já não é o provedor. Essas são mudanças lentas.
BBC Brasil – Você falou sobre a vantagem – isso é sempre identificado com o brasileiro, de forma geral, aquele que sempre quer levar vantagem em tudo, o malandro. Mas temos um revés disso com grandes políticos e empreiteiros sendo presos, a corrupção mais combatida, que pode mostrar que “não vale mais tanto a pena”. Isso pode mudar esse comportamento de apontar ou dedo e não olhar para si, nunca pensar na sua própria responsabilidade?
Calligaris – Essa é a grande esperança, embora eu não acredite que ela vai mudar a qualidade ética da nossa classe política tradicional. A Lava Jato tem esse aspecto de dilúvio universal nas casas das pessoas, mas não estou vendo os efeitos disso ainda.
Mas, do ponto de vista do cidadão comum, tenho uma pequena esperança de que isso mude um pouco a regra de querer levar vantagem em tudo, aproxime da gente a ideia de que em pequenas operações da vida cotidiana possamos ser tão corruptos no sentido de confundir o público e privado e de tornarmos a convivência publica uma coisa tão problemática. E ao compreender isso, podemos nos tornar cidadãos melhores.