O sucesso da série produzida pela Netflix nos leva a uma questão: se há conteúdo bom na web, por que pagar pelos canais a cabo?
House of Cards pode não ser a melhor série de TV de todos os tempos, mas está no time das melhores, e isso faz toda a diferença. A série, que conta a história de um ardiloso deputado do Congresso dos Estados Unidos, interpretado por Kevin Spacey, é uma combinação de The West Wing e Breaking Bad, com uma boa dose de Shakespeare, particularmente de Ricardo III.
É uma série típica da atual era de ouro da TV: sombria, dirigida com maestria, com ótimas atuações e cinco vezes melhor do que um filme médio de Hollywood. House of Cards foi produzida pela Netflix, e jornais como o The New York Times escreveram sobre a coragem da empresa, destacando especialmente sua decisão de divulgar os 13 primeiros episódios em um único dia, todos disponíveis para download e para serem assistidos em um computador ou em uma TV conectada à internet. Mas destacar isso tira o foco do que realmente faz de House of Cards um momento significativo na história da mídia.
Quando uma empresa de internet como a Netflix consegue produzir conteúdo de primeira linha, isso nos leva a um questionamento psicológico.Se a Netflix tiver sucesso produzindo conteúdo, outras empresas vão seguir o mesmo caminho e começar a conquistar market share nessa área. Talvez a Amazon vá além dos seus investimentos despretensiosos e aporte 100 milhões de dólares em uma série nível.
A diferente, ou talvez o Hulu expanda a sua ambição por conteúdo original, ou talvez o próximo grande show surja em um canal do YouTube. Quando isso acontecer, foi passado o bastão e o império caiu – e nós acompanharemos a primeira mudança fundamental no paradigma do entretenimento doméstico em décadas.
Web e Twitter no topo – Surgindo como uma séria competidora, House of Cards não é, evidentemente, uma boa notícia para os produtores tradicionais de conteúdo, como HBO ou CBS, mas não representa uma ameaça para a sobrevivência deles. O que a série realmente faz é questionar a existência da atual rainha do entretenimento doméstico no mundo, a indústria da TV a cabo.
As empresas de cabo fizeram quase 100 bilhões de dólares nos Estados Unidos por conta da audiência. Mas se você não precisa de TV a cabo para poder acessar bons programas e seriados, pelo que mesmo você está pagando?
Como qualquer mercado em estágio inicial, o cabo foi, em certo momento, um estranho no ninho, com legalidade questionável. No final da década de 1970 e no início da de 1980, o cabo atacou a dominação da televisão aberta com uma proposta de valor que era focada na qualidade do sinal (em comparação às antenas ligadas aos televisores), em uma ampla opção de escolhas (30 canais!), nas notícias em tempo real (CNN) e no acesso a novos e empolgantes tipos de conteúdo, como fazem MTV, ESPN ou o Playboy Channel. Com o passar dos anos, acompanhando a subida nos preços da TV a cabo, todas as partes de sua proposta inicial de valor foram definhando.
Em uma era de excesso de informação, a oferta de muitos canais é vista mais como um trambolho do que como algo positivo. A internet e o Twitter conseguiram, definitivamente, substituir a TV a cabo como fonte mais procurada para as últimas notícias (lembre-se da reportagem da CNN dizendo, erroneamente, que a Suprema Corte dos Estados Unidos havia derrubado o plano de saúde pública de Barack Obama, conhecido como Obamacare). Você pode ter acesso à maioria dos programas da televisão – com algum atraso – por DVD ou por algum site na internet. Pode acessá-los, além disso, diretamente em sites piratas. O PornHub comprou o Playboy Channel em 2011.
Então, repetindo a pergunta: em que mesmo milhões de espectadores estão gastando seu dinheiro? Antes de House of Cards, a resposta mais precisa para essa questão envolvia esportes ao vivo e a entrega atualizada e conveniente dos melhores shows. Mas se a série protagonizada por Kevin Spacey provar ser um modelo viável, a TV a cabo vai, com o tempo, se reduzir a apenas uma coisa: esportes ao vivo.
Mas os esportes, e o poder da inércia, são os dois últimos refúgios para o mercado do cabo e os seus canais, cada vez mais sem telespectadores. Isso não significa que a televisão a cabo não tenha perspectivas para o futuro. Mas neste ou no próximo ano, as empresas desse mercado terão que aceitar o fato de não serem mais as guardiãs do melhor conteúdo.
Ou seja, com o tempo, é bem provável que esse mercado tenha que aceitar a ideia de ser um simples distribuidor do conteúdo de outros (que foi seu modelo original), e funcionar essencialmente como o que antes se denominava “provedor de serviços de internet”. Isso não é bem o que o cabo parece estar interessado em fazer, mesmo com a farta quantidade de dinheiro nessa linha de mercado pelo mundo.
Para os geeks, há muito tempo está claro que, como questão meramente tecnológica, os modelos de entrega pela internet vão, por fim, transformar a TV a cabo em algo obsoleto. Mas nem sempre as melhores tecnologias vencem. Serão necessários momentos revolucionários para as coisas acontecerem. E, com perdão do trocadilho, ver o castelo de cartas desabar.
Tim Wu, 40 anos, é professor da Columbia Law School, colaborador das revistas Slate e The New Yorker e autor do livro Impérios da Comunicação – Do Telefone à Internet, da AT&T ao Google (Editora Zahar).
Fonte: Abril