No coração de Belo Horizonte, a empresária Eliana Ito, conhecida como Lili, mostra como as principais atrações de sua loja de artesanato: pratos, flores, representações do Divino Espírito Santo, coités e vasos de cerâmica de diferentes tamanhos. Ela mantém uma conexão com uma personagem que vive a 550 quilômetros da Capital: Deuzani Gomes dos Santos, de 58 anos, artesã da comunidade de Coqueiro Campo, na zona rural de Minas Novas, no Vale do Jequitinhonha. Responsável pela criação das peças preciosas exibidas pela comerciante em BH. Deuzani carrega consigo uma grande história de superação.
Deuzani é uma ex-viúva-de-marido-vivo, expressão dada às moradoras do Jequitinhonha que, historicamente, se acostumaram a permanecer sozinhas em casa, com os filhos, na maior parte do ano, enquanto os companheiros permanecem fora, no trabalho braçal no corte de cana, lavouras de café e outras atividades, fugindo da seca, em busca do sustento. Também já foi dependente do Programa Bolsa-Família, do qual saiu com o próprio esforço.
A artista da cerâmica conta que já enfrentou (e superou) muitas dificuldades para sobreviver e criar os três filhos, hoje, adultos. O ex-companheiro e pai dos seus filhos, Joaquim Gomes dos Santos, por vários meses do ano, era obrigado a pegar no batente longe do lugar de origem, no corte de cana em usinas de açúcar e álcool em São Paulo e outros estados, deixando Deuzani na condição de “viúva-de-marido-vivo” como outras centenas de mulheres do vale. “Era muito difícil. Nem existia comunicação direito. E mesmo para o Joaquim mandar o dinheiro era complicado. Quando meus filhos pequenos adoeciam, como a gente morava na roça, eu não tinha como levar eles no médico na cidade. Também faltava dinheiro para comprar remédio”, relata.
Ela relembra que também já encarou a angústia da falta de recursos para adquirir comida, pois, além da demora do envio do dinheiro pelo marido migrante, enfrentava a perda do poder de compra, devido à inflação que era muito alta naquele tempo. “Além disso, o que a gente plantava perdia quase tudo por causa da seca”, acrescenta a moradora, que, há nove anos, tornou-se viúva de fato, com a perda de Joaquim, que morreu aos 63 anos, em decorrência de um aneurisma.
Colocando a mão na massa – aliás, no barro – com a produção de artesanato em cerâmica, Deuzani deixou o sofrimento do passado e, hoje, experimenta uma completa melhoria de vida, graças ao talento e ao esforço próprio. A artesã também comemora a independência do Programa Bolsa-Família, do qual saiu há algum tempo. “Não sou contra a ajuda do governo para quem precisa. Mas, é melhor o incentivo para as pessoas trabalharem e terem o seu próprio ganho. Quando a gente depende do governo, a vida é limitada. Quando a gente consegue comprar as coisas com o dinheiro do próprio suor, é outra coisa. E muito bom ter uma independência financeira”, assegura.
Deuzani revela que aprimorou o oficio de fazer peças de cerâmica, recorrendo ao associativismo, junto com outras mulheres do Jequitinhonha, também “acostumadas” com a condição de “viúvas-de-maridos-vivos” ao longo de anos e que resolveram ir à luta com as próprias mãos para mudar de vida. A moradora da zona rural de Minas Novas trabalha junto com duas filhas: Gilcelane e Marcilene. A primeira a ajuda na confecção do artesanato, cuidando da pintura das peças de cerâmica. A segunda auxilia a mãe, com as postagens do material produzido nas redes sociais. Para isso, criou uma página no Instagram – @familiadeuzanivejequitinnha , visando divulgar o trabalho e incrementar as vendas. “Com a tecnologia, a gente pode mostrar “levar” nosso trabalho a muitos lugares. Já teve peças minhas que foram vendidas para Nova Yor e outros locais do mundo”, afirma a mulher.
Com orgulho, Deuzani afirma que ela e outras mulheres do Vale aumentaram a renda e mudaram a imagem da região. “Hoje, o artesanato do Jequitinhonha é conhecido mundialmente. A nossa região que era conhecida como o “Vale da miséria” , hoje é vista como um vale rico em cultura e em artesanato”, observa.
Estampando sorriso, a artesã diz que, por conta da sua renda com suas criações de cerâmica, hoje leva uma vida confortável, muito diferente do passado. “Me sinto uma pessoa rica. Não tenho nada sobrando. Mas, também não me falta nada”, declara. Ela faz uma reflexão sobre o significado de felicidade. “ Cada um acha que é feliz de um jeito. Uns pensam que é ter dinheiro. Outros acreditam que ser feliz é ter um carro novo. Eu considero que ser feliz é ter em paz, saúde e trabalho e morar em um lugar tranquilo, no meio da natureza, como eu vivo”, conclui a moradora da comunidade rural do Vale do Jequitinhonha.
Parceria comercial que empodera
“Todos nós temos a missão de ajudar os outros de alguma forma. Eu procuro ajudar as mulheres do Jequitinhonha a serem independentes. O meu sentimento é de orgulho por participar do crescimento delas”, afirma a empresária Eliana Ito, a Lili. Dona da loja de artesanato “Bem Mineiro”, ela estimula o empoderamento das artesãs do Vale do Jequitinhonha como Deuzani Gomes dos Santos que, ao longo de anos, sofreram sozinhas, com a saída dos companheiros para o corte de cana, e hoje, experimentam a superação e a melhoria da qualidade de vida por conta da criatividade e do próprio esforço.
Lili comercializa os produtos feitos à mão no Vale do Jequitinhonha, mantendo duas lojas no Circuito Cultural da Praça da Liberdade, em Belo Horizonte, nos prédios do Museu dos Metais e no Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB). A empresária salienta que, mais do que adquirir e revender as peças, ela realiza um trabalho de apoio às artesãs do Vale, que chama carinhosamente de “minhas meninas”. “O modelo de negócio que criei tem como foco auxiliar na geração de renda e de trabalho para as mulheres artesãs”, diz Lili. “É muito importante contribuir para que as mulheres do Jequitinhonha se sintam empoderadas e independentes, com trabalho e renda para o sustento da família. É muito bom poder contribuir para que elas tenham, garantindo a educação para os filho. Isso faz parte do meu propósito social”, completa.
Lili afirma que que mantém com as artesãs um sistema de cooperação mútua, sem obedecer às formalidades de uma parceria empresarial. “Trato elas como pessoas mesmo. Não como empresas. É uma relação de respeito ao trabalho das mulheres, marcada por empatia, solidariedade e companheirismo”, explica. A empresária salienta ainda que, dentro do espírito solidário, sempre procura auxiliar as artesãs de várias maneiras, considerando as dificuldades enfrentadas por elas, como as adversidades climáticas da região (historicamente castigada pela seca) e problemas familiares.
“Temos uma relação de confiança tão grande que, às vezes, eu sugiro a elas que solicitem o adiantamento do pagamento no ato da encomenda das peças para custear os seus gastos. E elas, por serem pessoas muito humildes, rejeitam a proposta”.
Eliana Ito enche de elogios o trabalho da artesã Deuzani Gomes dos Santos, uma de suas principais parceiras, quem conheceu há alguns anos, durante uma viagem de uma missão empresarial ao Jequitinhonha. “A Deuzani é uma pessoa muito especial. Ela e as filhas têm um primor e riqueza de detalhes nas peças dela que chamam muita atenção. Além disso, carregam uma sensibilidade muito grande”, avalia a empresária. (LR)