No ano em que o País registrou o recorde de homicídios, atingindo 62.517 mortes em 2016, a violência se abateu principalmente, e novamente, sobre negros e jovens, mantendo o histórico de vitimização concentrado em uma faixa etária e em uma cor, de acordo com o que mostra o Atlas da Violência 2018, estudo elaborado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública. A taxa de homicídios de negros (pretos e pardos) no Brasil foi de 40,2, enquanto a de não negros (brancos, amarelos e indígenas) ficou em 16 por 100 mil habitantes.
A diferença, que cresceu no ano analisado em relação aos anos anteriores, faz com que, em alguns Estados, negros convivam com taxas semelhantes as de países mais violentos do mundo, enquanto a baixa quantidade de assassinatos de brancos seja equivalente a de países desenvolvidos.
O Atlas está sendo divulgado nesta terça-feira, 5, pelas entidades, que o elaboraram com base em dados do Sistema de Informações sobre Mortalidade (SIM), do Ministério da Saúde. As informações do SIM são consideradas as mais completas sobre mortalidade no País, mas não as que têm a divulgação mais ágil: só em 2018 estão sendo divulgados os dados de 2016.
O número total de homicídios daquele ano já era conhecido por meio do Anuário do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, divulgado no ano passado. Mas o banco de dados permite acessar com maior precisão informações sobre a cidade de residência, além da idade e cor das vítimas. E tudo isso caminha para confirmar a tendência de aumento da violência nas regiões Norte e Nordeste, vitimando cada vez mais negros e jovens, em crimes que utilizam prioritariamente armas de fogo.
Em um período de uma década, onde mais de meio milhão de pessoas morreram, o relatório mostra que a taxa de homicídios de negros cresceu 23,1%; no mesmo período, a taxa entre os não negros teve uma redução de 6,8%.
Os pesquisadores, coordenados pelo economista Daniel Cerqueira, destacaram a situação em Alagoas: lá foi registrada a terceira maior taxa de assassinatos de negros (69,7 por 100 mil habitantes) e a menor de não negros (4,1). “Em uma aproximação possível, é como se os não negros alagoanos vivessem nos Estados Unidos, que em 2016 registrou uma taxa de 5,3 homicídios para cada 100 mil habitantes, e os negros alagoanos vivessem em El Salvador, cuja taxa de homicídios alcançou 60,1 por 100 mil habitantes em 2017”, ressaltaram.
As maiores taxas de homicídios de negros encontram-se em Sergipe (79) e no Rio Grande do Norte (70,5). Na década 2006 a 2016, esses Estados foram também onde a taxa mais cresceu: 172,3% e 321,1%, respectivamente. Já as menores taxas de homicídios de negros foram encontradas em São Paulo (13,5), Paraná (19) e Santa Catarina (22,4).
“A conclusão é que a desigualdade racial no Brasil se expressa de modo cristalino no que se refere à violência letal e às políticas de segurança. Os negros, especialmente os homens jovens negros, são o perfil mais frequente do homicídio no Brasil, sendo muito mais vulneráveis à violência do que os jovens não negros”, acrescentaram os estudiosos. Eles pedem que os dados sejam usados para elaboração de eficientes políticas de prevenção da violência, “desenhadas e focalizadas, garantindo o efetivo direito à vida e à segurança da população negra no Brasil”.
Há nove Estados nos quais as taxas de homicídio de negros decresceram na década 2006 a 2016. Entre esses, destaca-se as três maiores reduções: São Paulo (-47,7%), Rio de Janeiro (-27,7%) e Espírito Santo (-23,8%). São Paulo também se destacou por ser o Estado no qual as taxas de homicídios de negros e de não negros mais se aproximavam (13,5 e 9,1, respectivamente), mostrou o estudo.
A realidade de violência se repete quando são analisados os dados de vítimas mulheres. Em 2016, 4.645 mulheres foram assassinadas no País, o que representa uma taxa de 4,5 homicídios para cada 100 mil brasileiras. Em dez anos, observou-se um aumento de 6,4%.
No ano, confirma-se um fenômeno considerado “amplamente conhecido” pelos pesquisadores: considerando os dados de 2016, a taxa de homicídios é maior entre as mulheres negras (5,3) que entre as não negras (3,1) – a diferença é de 71%. Em relação aos dez anos da série, a taxa de homicídios para cada 100 mil mulheres negras aumentou 15,4%, enquanto que entre as não negras houve queda de 8%.
Jovens
Além de se abater sobre negros, a violência também mira com recorrência os mais jovens. O Atlas mostra que, em 2016, 33,5 mil jovens foram assassinados, aumento de 7,4% em relação ao ano anterior; a alta interrompeu a pequena queda registrada em 2015 em relação a 2014 (-3,6%).
“Um dado emblemático que caracteriza bem a questão é a participação do homicídio como causa de mortalidade da juventude masculina (15 a 29 anos), que, em 2016, correspondeu a 50,3% do total de óbitos. Se considerarmos apenas os homens entre 15 e 19 anos, esse indicador atinge a incrível marca dos 56,5%”, destaca o relatório.
O Atlas mostra que em 20 Estados houve alta na quantidade jovens assassinatos, com destaque negativo para o Acre (+84,8%) e o Amapá (+41,2%), seguidos pelos grupos do Rio de Janeiro, Bahia, Sergipe, Rio Grande do Norte e Roraima, que apresentaram crescimento em torno de 20%, e de Pernambuco, Pará, Tocantins e Rio Grande do Sul, com crescimento entre 15% e 17%. Em sete Estados verificou-se redução, com destaque para Paraíba, Espírito Santo, Ceará e São Paulo, onde houve diminuição entre 13,5% e 15,6%.
“Considerando a década 2006-2016, o país sofreu aumento de 23,3% nesses casos, com destaque para a variação anual verificada em 2012 (9,6%) e 2016 (7,4%). No período, destoa sem igual comparativo o caso do Rio Grande do Norte, com elevação de 382,2% entre 2006 e 2016.”
Cenário
Quando se observa o total de mortes entre todas as faixas etárias, entre todas as faixas etárias e cores, 11 estados apresentaram crescimento gradativo da violência letal nos últimos dez anos, sendo que, com exceção do Rio Grande do Sul, todos se localizam nas regiões Norte e Nordeste do País. Pela primeira vez, o País superou a marca de 30 mortes por 100 mil habitantes, consolidando “uma mudança de patamar nesse indicador (na ordem de 60 mil a 65 mil casos por ano) e se distancia das 50 mil a 58 mil mortes, ocorridas entre 2008 e 2013”, destacam.
O estudo chama atenção para a necessidade de se falar sobre governança na área, que é “a responsabilidade difusa de vários atores e instituições e, para se ter efetividade, ela precisa ser coordenada e articulada em torno do que está previsto na nossa própria Constituição”. “Na brecha deixada por essas instituições, o crime organizado ocupa os espaços e os territórios abandonados pelo Estado. Com isso, o medo passa a justificar discursos cada vez mais radicalizados e ideologizados, e assim a vida perde importância.”