Moradias no meio do mato, cobertas por lonas e com chão de terra batida; alojamentos perto ou dentro de currais e chiqueiros, em locais com cobras e camundongos, sem água potável nem local para fazer refeições. Trabalhadores expostos a riscos sem equipamentos de segurança e sem acesso a atendimento médico. Relatos assim são comuns nos relatórios de fiscalização e configuram condição degradante, presente em 94,9% das autuações realizadas no Estado desde 2004.
Esse aspecto, sozinho, já é suficiente para caracterizar o trabalho escravo de acordo com a legislação, mas não no imaginário popular, que ainda associa a prática à presença de correntes, navios negreiros ou senzalas. Pesquisa encomendada pela ONG Repórter Brasil à Ipsos Public Affairs, em 2016, mostrou que 70% dos brasileiros sabem que existe trabalho escravo no país, mas pouquíssimos sabem defini-lo.
Apenas 8% reconhecem as condições degradantes, 7% citaram trabalho forçado, e a jornada exaustiva só foi considerada por 1%. Uma em cada quatro pessoas disse, ainda, que receber um salário abaixo do que é considerado justo para a função não significa trabalho escravo.
As vítimas também não se reconhecem como escravos. “Em muitos julgamentos as pessoas diziam que não eram escravas, mas elas não conheciam outra forma de viver”, conta o juiz Carlos Haddad.
No último dia 6 de fevereiro, a reportagem acompanhou uma fase da operação Canaã: A Colheita Final, deflagrada pelo Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) e pela Polícia Federal (PF) contra uma seita religiosa que convence os seguidores a trabalhar sem remuneração justa, em troca da salvação. Em uma casa comunitária, em Contagem, na região metropolitana de Belo Horizonte, dos 12 moradores que supostamente trabalhavam para a igreja, só um falou com a reportagem e disse que todos estavam ali por vontade própria.
Com os auditores, a recepção não foi diferente. “Quando perguntamos sobre os contratos de trabalho, sobre a forma como foram aliciados e sobre qual era a relação deles com a organização religiosa, eles apresentaram muita resistência”, diz a auditora fiscal que acompanhou a operação, Dayane Alves Pereira.
A operação também aconteceu em outras cidades, onde mais trabalhadores foram encontrados na mesma condição, mas ninguém admitiu ser escravo nem quis ir embora. “O fato de alguém não se importar em trabalhar sem receber não deixa de configurar a situação como análoga à escravidão”, ressalta o coordenador do projeto de combate ao trabalho escravo do MTE em Minas, Marcelo Campos.
Especial. O trabalhador resgatado em condições análogas à escravidão tem direito a receber três parcelas no valor de um salário mínimo cada como seguro-desemprego especial.
Casos famosos
Terceirizados. Algumas das marcas mais famosas do Brasil já foram flagradas na prática do trabalho escravo. Em geral, o crime acontece em pequenas confecções terceirizadas. Em vários casos, os trabalhadores são estrangeiros, principalmente bolivianos.
Marcas. Lojas populares, de departamento e de grife já foram flagradas, entre elas Zara, Riachuelo, Marisa, M.Officer, Renner, Le Lis Blanc e Pernambucanas.
Com portaria, menos de 10% seriam crime
Se a polêmica portaria que o governo federal editou em outubro de 2017 para redefinir o trabalho escravo estivesse em vigor, menos de 10% dos casos flagrados em Minas Gerais nos últimos 13 anos seriam enquadrados no crime. O texto previa que trabalho escravo só seria caracterizado quando houvesse vigilância armada e emprego de métodos para cercear o deslocamento do trabalhador. Jornada exaustivas e condições precárias não seriam suficientes.
Para se ter uma ideia, nenhuma das fiscalizações encontrou vigilância armada e em apenas seis delas havia vigilância ostensiva. Com a repercussão negativa, a portaria foi revogada e trocada por outra em dezembro.
Ações geram R$ 100 mi em indenizações
De 2004 a 2017, o Ministério Público do Trabalho (MPT) firmou 149 Termos de Ajustamento de Conduta (TACs) em casos de trabalho análogo à escravidão em Minas. Desses, menos da metade (66) foram cumpridos totalmente. Apesar das estatísticas, há avanços, como pagamento dos direitos trabalhistas e reparos por danos morais.
Em 2017, nove ações civis públicas movidas pelo MPT, a partir do grupo móvel interinstitucional de fiscalização do trabalho escravo, geraram R$ 100,5 milhões em indenizações por dano moral coletivo no país.
FOTO: Tomaz Silva/Agência Brasil |
Auditores protestaram contra a polêmica portaria do governo |
Frases
“Não é fornecido material para primeiros socorros. Trabalhadores mataram cobras e escorpiões dentro dos barracos. Sem fornecimento de água potável.”
Trecho de relatório de fiscalização
“Alojamentos em péssimo estado. Instalações sanitárias precárias, sendo inexistentes nas frentes de trabalho. Instalações elétricas ofereciam riscos.”
Trecho de relatório de fiscalização
“Quanto à alegação de que o réu teria sujeitado os trabalhadores a condições degradantes de trabalho, entendo que o fato de os alojamentos estarem em condições precárias, por si só, não configura o delito em comento. Para isso, seria necessário que o réu tivesse suprimido aos trabalhadores o direito de escolha.”
Trecho de sentença
“É sabido e afirmado por todas as pessoas que são originárias ‘da roça’ que a vida e o trabalho no campo são duros, sob todos os aspectos, não traduzindo essa característica da atividade em redução à condição similar à de escravo.”
Trecho de sentença